Assinar

Mulheres que desafiam estigmas e lideram inovações no Brasil

Buscar
Publicidade
Women to Watch

Mulheres que desafiam estigmas e lideram inovações no Brasil

Conheça a história de empreendedoras que estão superando os obstáculos de inovar na ciência, saúde, tecnologia e finanças


24 de abril de 2025 - 8h15

A representatividade feminina no ecossistema de inovação, seja nacional ou internacional, segue baixa. De acordo com o relatório “The Global Gender Gap in Innovation and Creativity”, apenas 23% de todos os pedidos de patentes internacionais entre 1999 e 2020 tinham mulheres envolvidas. No último ano com dados disponíveis, 2020, elas eram 31%. Se mantiver o mesmo ritmo, a paridade entre os gêneros será alcançada apenas em 2061. 

Atualmente, existem mais redes de apoio e programas específicos que apoiam o empreendedorismo inovador entre as mulheres. Tais iniciativas são essenciais para aumentar a representatividade feminina no meio. Ana Júlia Kiss, fundadora e CEO da Humora, faz parte do grupo Sororitê, uma rede de investidoras-anjo com foco em startups lideradas por mulheres. “Essa iniciativa é uma oportunidade valiosa para provocarmos mudanças no cenário da inovação, fortalecendo nossa comunidade e coletividade. Infelizmente, menos de 2% do financiamento global é liderado por mulheres”, relata a empreendedora.

A Humora é uma empresa que atua no mercado brasileiro de cannabis medicinal. Ana Júlia fundou o empreendimento em 2022, impulsionada pela sua trajetória na indústria química e uma experiência pessoal, que a fez enxergar uma oportunidade de negócio. Ela percebeu como a cannabis medicinal trouxe benefícios para a saúde de uma pessoa próxima. “Essa vivência me fez questionar por que esses benefícios não eram mais acessíveis a todos”, conta. “Além disso, reconheci o enorme potencial do mercado de cannabis nos Estados Unidos, que ultrapassa 40 bilhões de dólares, mostrando uma evolução notável do uso recreativo para o medicinal e, atualmente, para o bem-estar”, destaca Kiss.

Experiência pessoal como inspiração

A Humora opera nos EUA e no Brasil e visa facilitar o acesso à cannabis medicinal controlada com fórmulas exclusivas e proprietárias, que tratam questões como melhoria do sono, imunidade, dores, libido e TPM. São quase três anos de operação, com um faturamento de aproximadamente R$ 1 milhão. “Nossos produtos não se limitam à cannabis. Usamos também outros fitoterápicos, pois acreditamos que a verdadeira solução está na combinação de várias plantas. Cada produto inclui misturas clássicas da cannabis com melatonina, valeriana, curcumina e beterraba, resultando em formulações desenhadas para aliviar as dores do dia a dia de forma eficaz e natural”, relata a CEO.

Ana Júlia Kiss, fundadora e CEO da Humora (Crédito: Luciano Alves)

Assim como Ana Júlia, muitas empreendedoras encontram inspiração para negócios e inovações de experiências pessoais. O mesmo aconteceu para Rafa Cavalcanti, hoje, CEO e fundadora da CloQ. “Sou filha de pequenos empreendedores da periferia de Recife. Vi o comércio dos meus pais ser assaltado mais de 17 vezes, levando minha família ao endividamento e à perda de acesso ao crédito formal, o que os fez recorrer a agiotas. Essa experiência me fez focar na economia de impacto e na inclusão dos chamados invisíveis financeiros, que são as pessoas sem histórico de crédito registrado, que, sem dados no sistema, simplesmente não existem para bancos e financeiras”, conta Rafa.

A CloQ é uma startup de microcréditos. Ela desenvolve análise de crédito inclusiva, que independe da renda ou do score tradicional, a fim de simplificar o acesso a capital. O primeiro empréstimo é limitado a R$ 150, como uma medida de segurança para avaliar o comportamento de pagamento. Se o histórico for positivo, os valores podem aumentar até R$ 500 com opções de pagamento a partir de 2 parcelas. 

“Chegamos a esse modelo com a proposta de não apenas oferecer crédito, mas de criar um caminho para que as pessoas construam um histórico financeiro positivo, incentivando um comportamento mais consciente e comprometido dos nossos clientes”, destaca Cavalcanti.

Incômodo com o mercado

A BossaBox, por sua vez, também surgiu de uma inquietação com o mercado. Os fundadores perceberam um problema estrutural na área de desenvolvimento de software. “Os incentivos entre clientes e fornecedores estavam completamente desalinhados. De um lado, empresas querendo pagar o mínimo e extrair o máximo. Do outro, fornecedores tentando entregar o mínimo possível para aumentar suas margens. Isso criava um jogo de forças que prejudicava todo mundo — especialmente o resultado final”, conta Jéssica Muniz, head de operações e cofundadora da BossaBox.

A solução foi criar um negócio baseado no modelo de trabalho squad-as-a-service, que monta e gerencia times sênior de tecnologia sob demanda em até 10 dias para desenvolver produtos digitais de seus parceiros. “Na BossaBox, o foco é construir uma relação baseada em confiança e alinhamento real de interesses. A gente só ganha quando o cliente ganha. Hoje, trabalhamos com contratos de performance garantida formalmente, e já estamos desenvolvendo formas de deixar esse modelo ainda mais eficiente e previsível”, destaca Muniz.

Jéssica Muniz, head de operações e cofundadora da BossaBox (Crédito: Luciano Alves)

Outras vezes, as inovações surgem quando há um ambiente que estimula o aprendizado, a criatividade e a cultura “maker”. A criação da Orby aconteceu assim, durante o Hacking Rio, que reuniu de forma despretensiosa Duda Franklin, Kalynda Gomes e Aldrén Martins na categoria de saúde e bem-estar e dali surgiu a solução que trata dores e limitações motoras por meio da neuromodulação.

“A neuromodulação é uma técnica clinicamente comprovada que usa estimulação elétrica para interagir com o sistema nervoso. Expandindo essa base científica, desenvolvemos um sistema pioneiro de neuromodulação não invasiva. Fruto de quase uma década de pesquisas, a Orby é a única que oferece uma solução capaz de aliviar a dor e reabilitar o movimento, por meio de uma abordagem mais precisa, escalável e inteligente”, destaca Duda Franklin, cofundadora e CEO da empresa.

Os desafios de inovar

Empreender é uma jornada marcada por descobertas, superações e, principalmente, desafios, especialmente para mulheres. Quando se trata de negócios inovadores ligados à ciência, saúde, tecnologia e finanças, essas barreiras se tornam ainda mais evidentes.

Para Ana Júlia Kiss, fundadora da Humora, um dos principais obstáculos foi o estigma em torno da cannabis. “O primeiro é o preconceito em relação à planta da cannabis, que traz muitos estigmas que necessitam ser superados. Isso exige que tratemos o assunto com delicadeza, focando na educação e na explicação sobre o sistema endocanabinoide e as moléculas presentes na planta, o histórico de proibicionismo, medo e tabu”, conta. Isso se soma à complexidade da regulamentação e à necessidade de informar o público sobre os benefícios à saúde humana, o que cria um caminho mais longo até a aceitação dos produtos.

Além disso, ainda existe a dificuldade de entender um mercado em formação. “O segundo desafio é compreender as regras do mercado, que não são impostas de forma clara e direta, mas resultam do protagonismo dos consumidores, que questionam as leis atuais. Isso nos leva à necessidade de desenhar o futuro que queremos para a indústria, em um cenário que ainda é cinza e não completamente claro”, aponta Kiss.

Duda, da Orby, enfrenta desafios semelhantes no campo da neurotecnologia. Em um setor altamente técnico e científico, comunicar de forma clara é essencial e difícil. “Há muito a ser descoberto sobre o sistema nervoso, que ainda guarda inúmeros segredos. Por isso, além do acúmulo de responsabilidades, precisamos constantemente refinar nossa comunicação para evitar que os discursos se tornem excessivamente técnicos”, destaca Franklin.

Mais do que isso, as empreendedoras ainda lidam com a desconfiança sobre suas capacidades de desenvolver tecnologia de ponta no Brasil. “Poucos sabem que Natal, no Rio Grande do Norte, onde crescemos, é um polo nacional de pesquisas em neurociências, que recebe pesquisadores do mundo inteiro. Isso graças a instituições como a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que têm contribuído significativamente para o avanço da ciência no País”, afirma Duda.

Duda Franklin e Kalynda Gomes, cofundadoras da Orby (Crédito: Elaine Kuntz)

Já Jessica destaca os desafios de escalar uma operação tecnológica robusta enquanto amadurecia como líder. “Ao mesmo tempo em que eu ainda estava me entendendo como profissional, ganhando maturidade, descobrindo meus próprios limites e estilo de trabalho, já tinha a responsabilidade de liderar outras pessoas, mostrar o caminho, reforçar a cultura e garantir que as decisões estivessem alinhadas com o que acreditávamos como empresa”, explica Muniz. E, embora o tempo tenha trazido segurança, lidar com gente segue sendo o ponto mais complexo. “É um tipo de desafio que não dá pra terceirizar”, diz. 

Ser mulher à frente de um negócio inovador

Além desses desafios, a estrutura do ecossistema de inovação não foi desenvolvido pensando nas mulheres. Jessica também aponta o peso de estar em ambientes que não foram pensados para o público feminino. “Existe uma expectativa de performance constante, de estar sempre disponível, que desconsidera nossos ciclos, nossos limites e até os momentos de vida. Isso torna o equilíbrio entre o respeito ao próprio corpo e a entrega das responsabilidades um desafio real. É como se a gente tivesse que encaixar num sistema que não considera nossas necessidades mais básicas, e isso cansa”, destaca Jéssica.

Esse cenário também revela uma lacuna estrutural: mesmo com o crescimento do empreendedorismo feminino, que hoje representa 31% das startups no Brasil, segundo o Sebrae, ainda há pouca representatividade nas lideranças de inovação. Para Rafa, da CloQ, esse é um dos principais entraves no setor financeiro: “Se a mulher não vê similares no universo financeiro, fica difícil enxergar o setor como uma oportunidade real de crescimento. Eu sei o quanto é desafiador romper barreiras e construir algo que realmente faça a diferença”, afirma.

Rafaela Cavalcanti, cofundadora e CEO da CloQ (Crédito: Luciano Alves)

Ana Julia Kiss complementa: “Muitas vezes não percebemos o impacto das mulheres na inovação devido às camadas de preconceito que ainda existem, que as relega a espaços clichês, como recursos humanos e assistentes, embora elas tenham potencial para atuar em todas as áreas”.

Para todas essas empreendedoras, a construção de uma rede de apoio foi essencial. Da parceria com sócios alinhados ao propósito à conexão com mentores, investidores e comunidades que acreditam no impacto do trabalho, essa rede se torna a base para seguir em frente, mesmo diante de tantas adversidades. Como resume Jessica: “Estar nesses espaços exige competência e resistência. Mas também me dá clareza do quanto é importante continuar ocupando esses lugares e abrir caminho para que outras mulheres possam fazer isso de forma mais leve e mais justa”.

Publicidade

Compartilhe

Veja também

  • O novo ciclo de Nathalia Oliveira na Africa Creative

    O novo ciclo de Nathalia Oliveira na Africa Creative

    De volta à agência como co-chief media officer da AfricaCreativeMídia, executiva fala sobre integração entre mídia e criação, inovação e futuro da área

  • A flecha virou câmera: a força indígena pela lente de Natália Tupi

    A flecha virou câmera: a força indígena pela lente de Natália Tupi

    Cineasta de Parintins discute como promover o audiovisual feito pelos povos indígenas e conta sua trajetória no cinema