Não deixemos de tocar as sirenes
Quando temos espaço para falar sobre uma pauta em que acreditamos, se o usamos para dizer que a pauta está morrendo, ajudamos a matá-la um pouco
Quando temos espaço para falar sobre uma pauta em que acreditamos, se o usamos para dizer que a pauta está morrendo, ajudamos a matá-la um pouco
20 de maio de 2024 - 11h22
Chegando em Paris esses dias de táxi ouço sirenes bem altas e fortes por cerca de um minuto. “Será que são aquelas sirenes para avisar de bombardeio iminente?”, pensei. Calma, Paris não estava sob ataque. Imaginei então que fosse alguma espécie de preparação para os Jogos Olímpicos, que vão acontecer em um momento muito conflituoso do mundo. Foi aí que o motorista de táxi me explicou que as sirenes são acionadas uma vez por mês desde a Segunda Guerra Mundial para que ninguém se esqueça do que a cidade passou. Fiquei refletindo sobre isso e sobre o valor que este tipo de símbolo tem para nos lembrar pelo que já passamos e que a paz e o progresso não são dados, mas conquistados diariamente.
Esse pensamento me dá um bom paralelo para a pauta de diversidade e inclusão na indústria hoje em dia. Tem gente por aí dizendo que a agenda DE&I perdeu a força. Que o tema não é mais importante e que pouca gente fala sobre isso. Bom, eu tenho uma opinião um pouco diferente, fruto da minha experiência pessoal e do resultado da pesquisa científica de mestrado neste tema que defendi recentemente.
Primeiro, fica claro como os resultados dos esforços em DE&I realizados nos últimos anos têm reflexos estruturais nas empresas, em algumas verticais mais e em outras menos. Mas em todas elas, a agenda chegou, e para as pessoas cujas carreiras foram impactadas de alguma maneira não há como desfazer o impacto.
Por exemplo, segundo o Global Gender Gap Report de 2023 do World Economic Forum, embora ainda haja grande disparidade proporcional de gênero entre os níveis de entrada e de liderança das empresas, além do êxodo de mulheres do mercado de trabalho durante a pandemia de Covid-19, a mensuração realizada anualmente desde 2016 mostra que todos os anos a representação feminina nas posições mais sênior de liderança (consideradas diretoria, vice-presidência e C-suite) se manteve subindo em todos os anos. Destaques de maior progresso para as indústrias de educação, saúde, serviços, bens de consumo, tecnologia, informação, mídia e setor público.
Existem inúmeros fatores a serem considerados aqui, como as interseccionalidades, a manutenção de estratégias intencionais e o pipeline de talentos dada a recuperação e reintegração das mulheres pós pandemia. Além deste, existem muitos outros estudos que trazem insights a respeito de mais amplos recortes de representação como raça, pessoas com deficiência, LGBTQIAP+ entre outros.
O progresso destes índices é de se reconhecer, mas não se pode tomá-lo como algo dado ou imutável. Ainda existem muitas forças inertes na sociedade que não são dadas a mudanças e tendem a repetir padrões tradicionais, muito em virtude do longo caminho ainda a se percorrer dentro da perspectiva da inclusão, o que de fato contribui para consolidar mais perfis e recortes integrados à força de trabalho nas empresas.
Estes dias eu e um grupo de mulheres do mercado ouvimos sobre projetos fantásticos da Gabriela Rodrigues, Raquel Virgínia, Samantha Almeida, Lara Magalhães, Raphaella Martins, Deh Bastos e Fernanda Tedde, que contaram como estão transformando realidades por meio da intencionalidade e criatividade empregadas em suas empresas e respectivas comunidades de parceiros.
Pessoalmente acho que cada uma delas, à sua maneira, tem uma fantástica habilidade para fazer os outros se engajarem com suas visões. Impossível não se encantar. Elas representam o que minha tese chamou de Change Makers, que são as lideranças alinhadas com outras lideranças que vêm para desafiar o status quo de forma produtiva e mensurável, entregando para as empresas formas de operar mudanças gerando valor. São sirenes constantes no mercado.
Quando temos espaço para falar sobre uma pauta em que acreditamos, se usamos esse espaço para dizer que a pauta está morrendo, ajudamos a matá-la um pouco. Porque todo espaço conta. Todo dia. Vale termos sempre o pitch pronto para quando a oportunidade aparecer e fazer valer toda micro mudança ao nosso alcance para sermos as transformações que queremos ser.
Ou seja, o progresso ainda enfrenta volatilidade, mas isso não significa que deixou de existir. Significa apenas que precisamos ligar as sirenes todos os meses para lembrar que chegamos até aqui, mas que tudo depende de um compromisso diário para mantermos o progresso que queremos ver.
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