Assinar

O inconformismo positivo sem gestão de risco e suas consequências

Buscar
Publicidade
Opinião

O inconformismo positivo sem gestão de risco e suas consequências

Precisamos entender os riscos e seus impactos quando se trata da reputação de marcas


18 de julho de 2023 - 9h00

(Crédito: qualit design/shutterstock)

Peço licença para chegar aqui e agradeço a honra de compartilhar um pouco dos meus conhecimentos adquiridos em mais de 13 anos de atuação em gerenciamento de riscos e resiliência corporativa. Esses conhecimentos foram lapidados por meio de experiências em gerenciamento de riscos operacionais, financeiros, reputacionais e sociais em empresas multinacionais, nacionais e startups de diversos segmentos. A escolha deste tema para minha primeira coluna aqui é exatamente o que tem me movido ao longo de tantos anos de carreira: o que esquecemos de aprender com o passado (ou estamos ignorando com afinco) e persistimos em fazer no presente, no que se refere à gestão da reputação de marcas. 

O inconformismo sempre motivou a humanidade a buscar o novo, o inovador, o melhor e a desafiar o status quo para viabilizar novas realidades. Essa motivação resultou em novos processos, produtos e mentalidades que nos trouxeram até aqui. Se isso é bom ou ruim, certo ou errado, Vingadores ou Thanos, Smurfs ou Gargamel, cabe a cada um de nós, individualmente, julgar com base em nossas construções sociais e moldadas por nossos preconceitos. Portanto, vamos nos concentrar exclusivamente na importância de uma gestão adequada de riscos e como estamos nos esquecendo da relevância dessa etapa na reputação de nossas organizações, atribuindo a culpa ao inconformismo positivo para inovar (infelizmente, para alguns, até mesmo para obter o “efeito lacração”). 

Sou uma defensora do inconformismo positivo nas organizações. Foi o inconformismo positivo de alguém que fez uma empresa de brinquedos entender que precisava representar o seu produto principal, uma boneca, de forma mais inclusiva, acabando assim com um dos meus traumas de infância. Esse brinquedo era inacessível para mim por dois principais motivos: eu nunca poderia ser tão “bonita” quanto ela e minha família não tinha condições financeiras para comprar a boneca e seus acessórios (sou uma mulher negra, orgulhosamente nascida e criada na Zona Leste de São Paulo e convivendo com as estatísticas contra mim e ausência de representatividade até minha adolescência). 

Após esse inconformismo positivo de alguém, finalmente vi uma boneca que agora refletia a diversidade de raças, profissões e corpos e que transmitia uma mensagem poderosa que me representava: meninas negras, levantem-se, agora vocês são representadas pela minha marca. Ganhei minha primeira boneca dessa marca aos 39 anos (ela tem cabelo crespo e é astronauta). Uau, cheirinho de mudança no ar! Pensei que o inconformismo positivo havia vencido. Minha empolgação durou até duas semanas atrás, quando no trailer do tão falado filme dessa boneca, nos deparamos com o padrão da boneca de anos atrás, como salvadora do status quo, ao ponto de sua criação ser comparada com a mesma importância da descoberta do fogo pela humanidade (segundo Hollywood, eu sei). Isso sem mencionar o fato de crianças quebrando cabeças de bonecas com formato de bebês. Pronto, voltei oito casas do jogo com relação a esta marca.  

Em contrapartida, um belo dia me deparei com um anúncio maravilhoso de uma linha de carros que fez parte da minha vida no passado (o primeiro carro da minha família foi um dos principais modelos desta marca): inteligência artificial utilizada para conexão musical, mãe e filha, passado e futuro. Novo momento Uau! O uso da inteligência artificial de forma acessível e em escala, sem o estigma de um “monstro maquiavélico” que rouba empregos e corrompe valores. Um “parêntese” importante: não podemos esquecer que a IA reproduz exatamente o que nós, seres humanos, alimentamos nessa tecnologia e, portanto, devemos gerenciar os riscos relacionados à IA e não os estigmatizar e como consequência, criarmos mais um tópico de polarização para unir ou desunir grupos familiares ou amizades.  

Do meu ponto de vista como consumidora, acompanhando o desenrolar desse anúncio pela mídia, a empresa mitigou todos os possíveis riscos, inclusive os legais, com a aprovação da família e a participação dela na execução do produto final, que uniu famílias inteiras em torno de um celular para vivenciar “a hora do intervalo”, inspirando uma nova geração a pesquisar sobre quem foi Elis Regina e quem é Maria Rita, ironicamente até mesmo por meio do ChatGPT e estabelecendo conexões significativas com o seu público-alvo. Com relação a esse anúncio, avanço doze casas do jogo com relação a esta marca. 

É importante reconhecer que nem todas as iniciativas serão vistas de forma positiva por todos os consumidores e inclusive, alguns acionaram o Conar alegando que o anúncio violou os princípios de respeitabilidade do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária. Para outros, como eu, o anúncio trouxe uma agradável sensação de conexão entre passado-presente-futuro, reforçando que o novo sempre chega. Ao contrário do meu sentimento no primeiro exemplo, em que minha conexão foi de os-traumas-do-passado-voltaram. Para os consumidores incomodados com a presença da IA em anúncios, deixo uma dica: comprem muitos analgésicos para dor de cabeça, pois ainda terão muito do que se incomodar com a IA. Ou será que ainda não perceberam os aplicativos que estão invadindo as redes sociais, utilizando IA para rejuvenescimento e criação de bebês que ainda não nasceram? (Se eticamente questionamos a utilização de IA em pessoas que já faleceram, não deveríamos questioná-la também em pessoas que ainda não nasceram?). Talvez sejam aqueles que amam o passado e não percebem que o novo sempre chega. 

E como o novo traz incertezas, de maneira coerente, o Conar está agindo de acordo com o que aprendeu com o passado: vamos entender os riscos, seus impactos e suas possíveis consequências. E espero sinceramente que profissionais de gestão de riscos estejam envolvidos nessa análise. Nos dois exemplos de inconformismo positivo que mencionei anteriormente, o Conar tomou uma posição pública: no primeiro caso, houve suspensão, e no segundo, uma representação ética. 

Falem bem ou falem mal, mas falem de mim ainda é o caminho para concretizar o inconformismo positivo em sua empresa ou em seus produtos? Independentemente da sua resposta, gostaria de contribuir com uma reflexão: precisamos urgentemente compreender o que significa “falar bem” e “falar mal”, e só há uma maneira de fazer isso: implementando a gestão de riscos em seus processos para conhecer seu apetite por riscos e cuidar da reputação de sua marca e de sua empresa. Seus consumidores têm memória e sabem o que sua empresa, sua marca e seus produtos fizeram no verão passado (ou alguém acha que, como consumidores, iremos esquecer um recente anúncio relacionado a produtos de depilação feminina que, por si só, já renderia um texto à parte sobre os princípios de respeitabilidade?). 

Precisamos do inconformismo positivo nas organizações, mas também precisamos que as empresas assumam o compromisso com os valores inegociáveis da sociedade atual, que passam pela gestão de riscos reputacionais relacionados a questões de ética, diversidade, integridade e inovação. Pois, no final das contas, adotar essas ações contribui para a conexão entre marcas, empresas, pessoas, memórias e vida. E faço um convite para que vivamos com escolhas responsáveis e não apenas em busca do vil metal. Até à próxima. 

Publicidade

Compartilhe

Veja também

  • Como as marcas podem combater o racismo na publicidade?

    Como as marcas podem combater o racismo na publicidade?

    Agências, anunciantes e pesquisadores discutem como a indústria pode ser uma aliada na pauta antirracista, sobretudo frente ao recorte de gênero

  • Cida Bento é homenageada pela Mauricio de Sousa Produções

    Cida Bento é homenageada pela Mauricio de Sousa Produções

    A psicóloga e ativista vira personagem dos quadrinhos no projeto Donas da Rua, da Turma da Mônica