O papel da internet no caso de Gisèle Pelicot
As violências contra mulheres praticadas na internet precisam não apenas do perpetrador, mas de um exército de cúmplices
O papel da internet no caso de Gisèle Pelicot
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13 de janeiro de 2025 - 6h49
Um eletricista. Um bombeiro. Um padeiro. Um enfermeiro. Um jardineiro. Um soldado. Um caminhoneiro. Um dono de restaurante. Estes são alguns dos condenados pela justiça francesa por estuprarem Gisèle Pelicot, que se encontrava dopada e desacordada, e assim era oferecida em fóruns de internet pelo marido, Dominique, a ser violada por outros homens durante quase uma década.
O caso, que tem atordoado não só a França, mas a todo mundo, chegou a um momento decisivo na corte local, com a condenação a Dominique e aos demais 51 réus, com penas que variam entre 5 e 20 anos. Outros 20 homens que aparecem nos vídeos não foram identificados nem julgados.
O caso Gisèle Pelicot tem uma série de particularidades que o tornam atípico em julgamentos de violência sexual. E não, infelizmente, não estou falando da intensidade da perversidade e do volume de violações ao qual essa mulher foi submetida. Falo, pesarosamente, do perfil da vítima, uma senhora, mãe e avó, aparentemente acima de quaisquer suspeitas a respeito de seu comportamento e de sua integridade, bem como do fato de que os estupros foram registrados e armazenados digitalmente por seu marido. As provas, abundantes, visuais e incontestáveis, foram decisivas para o caso.
A maior parte dos casos de estupro não conta com essa abundância material de provas. É digno de nota, também, que mesmo diante dos extensos registros visuais das violações, os condenados ainda negaram veementemente a violência. “Achei que fosse um jogo sexual”, “não tive a intenção”, “não percebi que ela estava dopada”, “estupro é coisa de loucos e violentos”, “fiz com a autorização do marido” e “não entendi que não havia consentimento” foram algumas das justificativas mais utilizadas durante o julgamento. Muitos argumentam, inclusive, que foram “ingênuos”, que não sabiam o que era “consentimento” e, por isso, tentaram construir uma narrativa em que eles próprios seriam vítimas.
Outra peculiaridade do caso Pelicot foi o modo pelo qual os estupros foram descobertos pelas autoridades francesas. O marido Dominique foi abordado em 2020 em um supermercado no vilarejo de Carpentras após ser visto filmando, com seu celular, por baixo das saias de mulheres que frequentavam o local. A prática, que é conhecida como “upskirting”, tem adeptos em todo o mundo. Em 2022, a Meta anunciou que removeu volumes massivos de conteúdos dessa natureza de suas redes, em especial o Facebook, após a BBC ter conduzido uma vasta reportagem sobre o tema.
Após a abordagem feita a Dominique, a polícia francesa descobriu um vasto material que incluía os vídeos dos estupros sofridos por Gisèle cometidos por ele e outros homens meticulosamente categorizados em um arquivo denominado “abuso”. O caso Pelicot é repleto do que o sistema de justiça chama de materialidade. Além dos vídeos, existem numerosos registros de conversas entre Dominique e os demais condenados. Foi somente ao ser abordada pelas autoridades que Gisèle descobriu o que se passava. Por meses, inclusive, ela apresentava problemas de saúde aparentemente inexplicáveis, sendo levada pelo marido a médicos.
O caso Pelicot é atroz, mas pode e deve servir para pautarmos mudanças significativas na sociedade em relação à violência contra as mulheres. Devemos nos perguntar, por exemplo, qual teria sido a consequência destes estupros caso não tivessem sido registrados. Será que a história de Gisèle, em apenas suas palavras, seria crível o suficiente para a polícia, o sistema de justiça, a mídia e toda a sociedade? E se Gisèle não fosse uma senhora aposentada, avó e aparentemente recatada? Teríamos nos consternado da mesma forma diante de outro perfil de vítima?
Outro elemento que devemos levar em consideração é o papel da internet e das tecnologias digitais no caso. Foi por estar produzindo conteúdos íntimos não consentidos de mulheres em espaço público que Dominique Pelicot foi enfim pego. Seus registros digitais levaram a polícia e a justiça a descobrir a profundidade dos crimes sexuais cometidos por ele.
Durante quase uma década, Dominique utilizou fóruns de discussão na internet para conhecer e arregimentar cúmplices na violação de sua esposa. Não nos deveria causar no mínimo incômodo que estes espaços não tenham sido denunciados por usuários, encontrados por autoridades ou regulados por empresas de internet?
A pesquisa “Misoginia e Violência contra mulheres na internet: um levantamento sobre fóruns anônimos”, realizada por nós, identificou que 69% dos conteúdos sobre pornografia compartilhados em fóruns “chans” mencionam violências contra mulheres. Esse não é um cenário apenas brasileiro.
No dia seguinte à condenação de Dominique e demais réus, em meio ao júbilo público, agências de notícias europeias divulgaram uma extensa investigação jornalística alemã que descobriu cerca de 70 mil grupos de conversa dedicados ao compartilhamento de histórias de estupro no Telegram. Os grupos reúnem homens de várias nacionalidades que compartilham histórias, fotos e vídeos de violações cometidas por eles. Muitas das vítimas são esposas, irmãs e mães. Em algumas situações, os usuários também compartilham instruções sobre como fazer o mesmo.
Se ao menos um usuário dos fóruns frequentados por Dominique, ou mesmo um dos condenados que ao chegar no local tenha se deparado com uma mulher desacordada, tivesse alertado autoridades, poderíamos ter poupado ou reduzido a dor de Gisèle?
Costumo dizer que as violências contra mulheres praticadas na internet, como discurso de ódio, práticas misóginas, deepfakes ou vazamentos de imagens íntimas, precisam não apenas do perpetrador, mas de um exército de cúmplices por omissão. Somos todos responsáveis.
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