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Revolução Femtech: saúde das mulheres, investimento e inovação

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Revolução Femtech: saúde das mulheres, investimento e inovação

As startups fundadas por mulheres estão criando um mercado que, além de atender demandas, quebra tabus, gera lucro e dá protagonismo às lideranças femininas


11 de novembro de 2022 - 13h02

Apenas 4,7% das startups brasileiras são fundadas por mulheres, revela o estudo Female Founders Report 2021 da Distrito, Endeavor e B2Mamy. O número chega a 5,1% quando consideramos co-fundadoras ao lado de homens. Além do reduzido índice de empreendedoras, essas empresas receberam 0,04% do aporte financeiro total investido em 2020, entre os 13 mil empreendimentos analisados pelo estudo.

Saúde e biotecnologia é o segmento que mais se destaca entre as startups fundadas exclusivamente por mulheres, representando 15,2% do total. Em sua maioria, elas são chamadas de “femtechs”. O termo foi cunhado em 2016 pela Ida Tin, co-criadora do aplicativo Clue, que acompanha as fases do ciclo menstrual.

O nome caracteriza as startups que focam na saúde e bem-estar feminino, e podem abordar diferentes áreas com distintas soluções, desde saúde reprodutiva, gestação, parto e ciclo menstrual até questões que envolvem sexualidade, assoalho pélvico, endometriose, saúde vaginal e oncologia. Trata-se de um mercado pouco explorado, ainda em seus primórdios no Brasil. Uma vez que a saúde das mulheres foi historicamente negligenciada pela medicina e inovação, esse é um terreno fértil e com muito potencial de crescimento.

Um estudo publicado na Science analisou as patentes biomédicas dos Estados Unidos registradas de 1976 a 2010 e descobriu que as equipes de inventoras exclusivamente femininas são 35% mais propensas a se concentrarem na saúde das mulheres, em comparação aos times exclusivamente masculinos. Em contrapartida, a menor participação feminina nas invenções afetou diretamente o que é criado, de acordo com os pesquisadores.

“Essas descobertas sugerem que a diferença de gênero entre inventores é parcialmente responsável pelo desaparecimento de milhares de invenções focadas em mulheres desde 1976. De modo mais geral, nossas pesquisas sugerem que quem se beneficia da inovação depende de quem inventa”, resume o artigo (em tradução livre).

TERRENO DE OPORTUNIDADES E DEMANDAS

Paula Crespi e Flávia Deutsch, fundadoras da Theia, clínica especializada na saúde da gestante (Créditos: Divulgação)

Antes de fundarem a Theia, clínica de saúde da gestante, Paula Crespi esteve no time de negócios do GuiaBolso, uma das principais fintechs do Brasil, onde liderou as áreas de Produtos e Marketing. Flávia Deutsch, por sua vez, tinha uma carreira no mercado financeiro, quando passou a liderar a área de produto, marketing e vendas da fintech Acesso.

Ambas já tinham experiência com o universo das startups, mas foi a experiência da gravidez que a fizeram enxergar a oportunidade de empreender e propor soluções para as gestantes. “Nossa missão é redefinir a experiência das mulheres com o sistema de saúde, para que elas tenham mais apoio, respeito e autoconfiança na jornada da maternidade”, descrevem.

Por ser um período delicado, que requer muitos cuidados médicos, as mulheres conhecem na pele a necessidade de novas soluções para as demandas das gestantes, o que inclui desde questões como acesso facilitado a consultas e exames até tratamento humanizado e direito ao parto normal. Segundo o Femtech Analytics, 21% das startups analisadas mundialmente focam no segmento da gravidez, seguido pela saúde reprodutiva e contracepção, com 17%.

Para ter uma noção do tamanho da demanda, o PitchBook, que trabalha com pesquisas e dados financeiros, estima que as mulheres gastam cerca de 500 bilhões de dólares anualmente em despesas médicas. Apesar de serem metade da população global, apenas 4% de toda a pesquisa e desenvolvimento em saúde são direcionadas a problemas de saúde da mulher, conforme constata o PitchBook. No Brasil, de acordo com as fundadoras da Theia, o mercado das femtechs ainda está engatinhando.

“Estamos apenas nos primórdios e, certamente, há muito potencial de crescimento, com questões relacionadas à menopausa, cuidados preventivos e câncer de mama, nos quais há poucas startups surgindo, mesmo fora do país, e com financiamento de venture capital ainda embrionário. Aqui, quando comparamos o dólar investido em equivalentes soluções para o público masculino, vemos que há muito espaço para soluções voltadas às mulheres”, relatam.

INVESTIMENTOS E DESAFIOS

A Theia virou um case de sucesso entre as startups brasileiras. Paula Crespi e Flávia Deutsch, que enxergaram uma demanda latente e tinham experiência com o mercado financeiro, conseguiram levantar o maior valor em investimentos de 2019 para uma companhia fundada apenas por mulheres, com um total de R$ 7 milhões.

Elas não apenas conseguiram um grande aporte, mas também determinaram que para cada investidor homem, elas teriam uma investidora mulher. “Esse foi um processo bastante intencional, pois, desde o primeiro momento que decidimos empreender, traçamos o objetivo de trazer uma mulher anjo para cada cheque de um homem que tivéssemos. Sabíamos o quanto o conhecimento sobre as oportunidades de investimento ainda estava fechado dentro de um grupo majoritariamente masculino. Nem nós, Paula e eu, apesar de estarmos inseridas nessa rede, havíamos feito qualquer aporte em startups, então queríamos mudar essa realidade. O que fizemos foi mapear mulheres que seriam estratégicas dentro do tipo de negócio que desenhamos, e ativamente abordamos cada uma delas para mostrar porque investir na Theia”, revelam.

Apesar da grande oportunidade e do crescimento das femtechs, ainda há muitos desafios a serem ultrapassados, principalmente em relação aos investidores. “Quando falamos nos desafios para as mulheres, ainda há muito mais homens investindo do que elas, o que traz a dificuldade de entendimento do problema em si quando se fala de uma femtech, pois se trata de uma solução voltada ao público feminino”, destacam as fundadoras.

Segundo o relatório da Distrito, as empreendedoras de startups sofrem com a discriminação de gênero, principalmente durante as entrevistas com possíveis investidores. 45,7% das entrevistadas responderam que são questionadas se têm o conhecimento técnico da área, 29,9% são perguntadas se são mães, e 61,4% se têm condições de conduzir os negócios.

“É preciso mostrar o tamanho da oportunidade para o investidor. As empreendedoras precisam provar com dados o potencial do mercado, mas à medida que as femtechs lá fora têm demonstrado que o mercado é grande, isso também faz abrir os olhos do investidor local”, aconselham as fundadoras da Theia.

Os Estados Unidos são o principal mercado das femtechs, com 51% das empresas do ramo mundialmente, seguido pela Europa, com 25%. Em contrapartida, a América do Sul corresponde a apenas 1%. No Brasil, de acordo com o mapeamento da Inside Healthtech Report, da Distrito, existem 23 startups focadas na saúde da mulher.

Para destacar os números que circulam entre femtechs, em 2020, o tamanho deste mercado representou US$ 40,2 bilhões, e a projeção de crescimento está estimada em US$ 75,1 bilhões de 2020 a 2025, segundo o Arizton Advisory & Intelligence.

Seja devido à pandemia, aos movimentos feministas como o #MeToo ou simplesmente a uma oportunidade de negócio, as demandas da saúde feminina estão sendo ouvidas. O Femtech Analytics aponta como fatores de desenvolvimento deste mercado o crescente interesse de investidores na área, a demanda por soluções inclusivas para a saúde reprodutiva e o bem-estar das mulheres, a necessidade mundial por soluções digitais e a normalização de temas da saúde feminina que são pouco discutidos.

QUEBRANDO TABUS

Marina Ratton e Marília Ponte, fundadoras da Feel & Lilit, femtech focada no bem-estar sexual das mulheres (Créditos: Bruna Bento)

A Feel & Lilit surgiu exatamente para difundir o debate acerca da sexualidade feminina. Elas foram criadas como iniciativas separadas: a Feel, focada em produtos naturais e veganos para a região íntima, e a Lilit, em brinquedos sexuais.

“Desde o começo, as duas marcas tinham muita sinergia e projetos em comum. Nascemos no meio da pandemia, fizemos parcerias logo no início das nossas jornadas empreendedoras e nos tornamos grandes amigas. Esse namoro, como costumamos dizer, só poderia virar casamento, sendo consolidado em junho deste ano [2022]. O objetivo foi unir forças e continuar na luta pela ampliação do mercado de ‘sexual wellness’ brasileiro, levando produtos de qualidade e informações sobre saúde e sexualidade para as mulheres”, diz Marília Ponte, fundadora da Lilit.

O período da pandemia foi um catalisador para a Feel & Lilit e para o mercado das femtechs em geral, tanto em relação ao crescimento dos investimentos, como para o surgimento de novas startups e o aumento da demanda pelas consumidoras.

“A pandemia incentivou os cuidados com a saúde e o bem-estar íntimo e também despertou maior curiosidade das pessoas quanto à sexualidade. Ao mesmo tempo em que impulsionou a venda de vibradores para as mulheres que queriam testar, colocou outro grupo em reflexão sobre sua relação com a sexualidade, principalmente com o que não estava funcionando. Por esses motivos, a pandemia pode, sim, ter contribuído para a ampliação do mercado das femtechs”, reflete Marília.

O mercado, que já vinha em crescimento, disparou em valores de investimentos em plena Covid-19. Em 2021, o investimento global de venture capital nas femtechs ultrapassou US$ 1 bilhão pela primeira vez, de acordo com o PitchBook, e chegou a US$ 2,5 bilhões, segundo a McKinsey & Company. Um crescimento acentuado em comparação aos US$ 695 milhões investidos em 2020. O Femtech Analytics estipula que, em 2021, havia mais de 1.300 startups no mundo, em comparação às mil que existiam em 2020.

No Brasil, a tendência também se comprovou. “Em 2021, a Feel passou por sua primeira rodada de investimentos, por meio da plataforma de equity crowdfunding Wishe, na qual obteve um índice histórico de 84% do financiamento liderado por investidoras mulheres, alcançando uma captação de R$ 550 mil. Ela também esteve presente na primeira turma de aceleração da Boticário, a GB Ventures”, relata Marina Ratton, fundadora da Feel.

Certamente, o mercado das femtechs está em crescimento, inclusive no Brasil, passando de algo restrito a um círculo de empreendedoras para um espaço de reconhecimento. “As femtechs estão ganhando corpo a cada ano e, com a criação de novas empresas, estamos deixando de ser vistas como um nicho, um segmento, para sermos vistas como uma rede. Se continuarmos galgando cada passo com confiança no que estamos fazendo, em pouco tempo teremos um novo boom das femtechs”, afirma Marina.

Apesar dos números crescentes de novas empresas e investimentos na área, elas ainda representam uma porcentagem muito pequena quando comparada aos números totais investidos na saúde digital. De acordo com a RockHealth, apenas 3% dos acordos em saúde digital dos EUA desde 2011 se concentram na saúde da mulher, e a grande maioria foca em soluções para a saúde reprodutiva.

“Ainda enfrentamos muitos preconceitos e tabus quando falamos de saúde e sexualidade feminina. Estamos constantemente educando a sociedade sobre esses temas e buscando ampliar o debate, para que cada vez mais mulheres possam discutir e expor as suas dores com segurança e confiança. Acredito que as femtechs estão no caminho certo, mostrando seu trabalho, buscando investimento, ouvindo as mulheres e disseminando informações necessárias”, reflete Marília.

O diferencial destas startups, além de serem fundadas por mulheres e focarem na saúde feminina, é que elas integram as clientes no desenvolvimento de suas soluções. Marina Ratton destaca que a escuta ativa e o foco no ‘pain point’, os pontos de dor das consumidoras, são os diferenciais da marca. “Contamos com os feedbacks das mais de 2 mil mulheres que fazem parte da comunidade Feel & Lilit. Trouxemos elas para o centro do desenvolvimento. O fato de sermos mulheres muda tudo, porque conseguimos pautar um tema tabu de uma forma escalável.”

O FUTURO É FEMININO: A UNIÃO FAZ A FORÇA

A disseminação de informações e a organização de coletivos são essenciais para fortalecer o terreno das femtechs, conforme destaca o Femtech Analytics. No Brasil, por exemplo, existe a Femtech Brasil, movimento que reúne startups do ramo e apoiadores, como a Feel & Lilit, Fertilid, Gestar, B2Mammy, Wishe Women Capital e outras.

Além do apoio mútuo, os analistas destacam a importância da criação de aceleradores de startups focados na área. Por aqui, já existem programas do tipo. A Natura acabou de abrir uma chamada para startups de bem-estar feminino em estágio inicial, o desafio Natura Innovation Challenge – Bem-Estar. Eles irão selecionar três iniciativas com soluções inovadoras para receber mentorias e aportes financeiros. As inscrições estão abertas até 25 de novembro.

Já em relação às oportunidades de negócios, as saídas são inúmeras. Contando que mais da metade da população brasileira são mulheres, representando 51,8%, de acordo com o IBGE, a demanda por soluções em saúde é latente. Por exemplo, existem doenças que afetam exclusivamente as mulheres, como aquelas relacionadas à contracepção, fertilidade, amamentação, pré-natal, menopausa, toda a área da ginecologia e sexualidade feminina, menstruação, doenças vaginais e até alguns tipos de câncer, como o de mama, colo de útero e de ovário.

Outras condições, como algumas doenças cardiovasculares, por exemplo, afetam as mulheres de modo diferente e merecem atenção especial. Também existem enfermidades que acometem expressivamente mais mulheres do que homens, como doenças autoimunes, enxaquecas, osteoporose e Alzheimer, conforme relata um artigo da McKinsey.

Além disso, como as mulheres costumam ser encarregadas dos cuidados da família, investir na saúde feminina também traz benefícios em cascata para outros grupos, como crianças e idosos. “A saúde da mulher, em outras palavras, contribui de forma significativa para sociedades mais fortes e saudáveis”, ressalta o artigo.

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