Amor, falta de acesso, fé e luta: os desafios do encontro com o câncer de mama
Ana Cortat, VP Executiva da Soko, discorre sobre sua trajetória desde a descoberta do câncer de mama
Amor, falta de acesso, fé e luta: os desafios do encontro com o câncer de mama
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3 de outubro de 2023 - 17h33
Nossa história começa no dia em que a Arlete, que trabalha comigo em casa há 5 anos, soube que eu havia recebido um diagnóstico de câncer de mama. A Arlete é uma mulher incrível com quem passo a maior parte do meu dia. Somos muito diferentes, em muitas coisas, mas temos uma relação profissional e de apoio mútuo. Ver a força dela entrar na minha casa todos os dias é sempre maravilhoso. Falei com ela sobre o diagnóstico logo depois de desligar o telefone. Ela chorou sem parar por minutos. Chorou como se tivesse ouvindo que eu ia morrer. Eu disse que estava tudo bem, que eu não ia morrer mas ela não parava de chorar. Enquanto chorava, me contou como o câncer de mama havia sido cruel com sua tia, o quanto tinha sido um processo de dor e sofrimento. A tia da Arlete, Dona Gracinha, viveu o câncer de mama em uma realidade totalmente diferente da minha e isso define muita coisa.
Na minha realidade, saí de casa às 07 da manhã do dia 21 de agosto em direção ao Fleury do Morumbi 6 dias depois de um vislumbre no qual me vi em quimioterapia. A semana anterior tinha sido cheia de coisas como um trânsito de quase 10 horas até Santa Rita do Sapucaí onde participei de um painel sobre a necessidade de revermos o significado do sucesso e uma palestra sobre como peregrinações para a India mudaram a forma que tomo decisões e lidero times enquanto eu pensava no que ia fazer quando tivesse certeza de que estava doente.
Três dias depois eu já estava fazendo a biópsia, algo impossível de acontecer se você não tem um médico de família para o qual possa ligar a qualquer hora do dia ou da noite e sem um excelente plano de saúde. Cinco dias depois acordei e verifiquei o celular antes de sair da cama. Olhei e vi que meu médico, uma das pessoas nas quais eu mais confio no mundo, tinha ligado no dia anterior às 11 da noite. Poderia até ser normal vindo dele que faz cirurgias até muito tarde e jamais esquece o que é prioridade para as pessoas cuja saúde ele acompanha mas, nesse caso, era mais que normal, era preocupante.
Quando vi que meu médico havia ligado, não pensei que poderia ser o resultado, achei que ainda não estava pronto. Liguei de volta assim que vi, ainda era muito cedo, e ele disse o que eu já sabia mas cortou meu coração quando ouvi. Meu encontro com o câncer estava acontecendo através da minha mama esquerda com um tumor de baixa agressividade em um estágio absolutamente tratável, foi o que meu médico disse enquanto me preparava para a longa e difícil jornada que teríamos pela frente.
O caminho que percorri entre a visão e o resultado da biópsia não é acessível a todas as mulheres. A qualidade e disponibilidade de profissionais, equipamentos e tipos de exames, a velocidade de atendimento e até mesmo a visão não são coisas acessíveis a todas as mulheres. Sim, eu tive um vislumbre do que estava para acontecer e, acredite você ou não, a capacidade de intuir o futuro é uma das tecnologias humanas que foi desvalorizada e apagada pelo que entendemos como progresso. Hoje considerada impossível de ser reconhecida como razoável ou verdadeira, a intuição é um sentido que, como qualquer outro, define como percebemos o mundo. Um sentido que fomos induzidas a ignorar há tempo demais.
Durante o meu vislumbre, me vi em quimioterapia, um processo previsto para o meu caso mas ainda não uma certeza. O tumor que se instalou em mim é sensível a hormônio então posso começar com um processo menos agressivo. O acesso a remédios para terapias hormonais como o Femara, apesar de garantido por lei, ainda pode ser difícil até mesmo para mulheres com plano de saúde privado. Saber mais sobre as características de um tumor é tão importante quanto detectá-lo e isso é possível hoje através de diversos exames, entre eles o histopatológico que permite que a natureza, gravidade, extensão e evolução do tumor sejam adequadamente compreendidas, foi esse tipo de exame que orientou o início do meu tratamento.
No ano passado, foi sancionada no Brasil a LEI 14.450, que criou o Programa Nacional de Navegação de Pacientes para Pessoas com Neoplasia Maligna de Mama, um programa que prevê o acompanhamento, em todo o país, dos casos de suspeita ou de confirmação de câncer de mama, com abordagem individual dos pacientes para prestar orientações e ajudar a agilizar o diagnóstico e o tratamento da doença (Fonte: Agência Senado, 22/09/2022). O SUS responde por 40% dos casos de câncer de mama diagnosticados em estágio avançado no Brasil. Quando Dona Gracinha encontrou o câncer de mama, essa lei ainda não existia.
Ainda não sei se realmente vou precisar fazer quimioterapia. Meu tumor é inflamatório e é maior que uma bola de tênis de mesa e precisa diminuir antes da cirurgia, o que pode acontecer apenas com a terapia de bloqueio hormonal, mas como tenho mais de 50 anos, é provável que a quimio seja indicada de qualquer forma. Essa certeza fez meu médico indicar o MamaPrint, um teste genético que avalia a biologia do tumor e determina o quão agressivo ele é e o risco de recorrência. O MamaPrint pode impedir que sejamos submetidas à quimioterapia, um processo altamente agressivo de tratamento que envolve ressecamento da pele, perda de cabelo, inchaço e emagrecimento e ainda é comumente negado pelos planos de saúde com a justificativa de que o exame não está no rol de procedimentos e eventos de cobertura obrigatória da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Dona Gracinha, tia da Arlete, jamais soube da existência do Mamaprint. Veja, não tenho nenhuma dúvida de que, se acontecer, a quimioterapia pode ser uma das piores experiências da minha vida, mas essa realidade pode ser piorada pela falta de informação, pela distância da família e pela dificuldade de acesso a tecnologias mais avançadas de tratamento. A Arlete e a Dona Gracinha, ambas mulheres pretas, viram isso de perto.
Em 2023, a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) registrou aumento de cerca de 26% nos casos de câncer de mama nos estágios mais graves da doença. Análises publicadas pelo International Journal Public Health, a partir do DataSUS, afirmam que uma das causas desse aumento é a redução no número de mamografias realizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nos períodos mais críticos da pandemia, e o número de casos de câncer entre pessoas com menos de 50 anos aumentou 79% nas últimas três décadas segundo artigo publicado na revista científica “BMJ Oncology”. E isso não é tudo. Segundo sondagem divulgada em junho pela Sociedade Brasileira de Mastologia, Regional Rio de Janeiro, em parceria com o Instituto Nosso Papo Rosa, no último mês de junho, 2 em cada 10 mulheres negras sofrem discriminação durante o diagnóstico ou o tratamento do câncer.
Nos últimos 30 dias, segui conversando com a Arlete sobre câncer, tratamentos, exames e sugeri que ela procurasse um médico para que ele pedisse os exames que permitem o diagnóstico precoce. Como mulheres, se realmente acreditamos em coisas como coletivo e redes femininas de apoio e afeto, temos a obrigação de cuidar para que as mulheres e homens trans com as quais trabalhamos recebam o nosso apoio na forma de conhecimento e informações sobre seus direitos e, também, através da liberação do trabalho para marcação e realização de exames. Se o diagnóstico do câncer de mama vier, essas pessoas devem encontrar em nós acolhimento, diálogo, redução de horas trabalhadas e liberação total remunerada, quando necessário, além de segurança trabalhista.
Eu não sei tudo mas sei que se fizermos muito pouco vamos estar fazendo 2 das 4 coisas mais relevantes para que mais mulheres sintam menos dor e vivam jornadas de cura menos agressivas em um eventual encontro com o câncer de mama: família (e tudo o que isso significa) e rede. Eu não sei onde você está sentada, que lugar do mundo você ocupa, se é mãe, filha, irmã, esposa, empreendedora, executiva, empregadora, funcionária ou tudo isso junto mas queria te dizer: estamos no tempo certo, o tempo em que vamos definir o que o mundo vai ser em 30 anos através do que conseguirmos ser hoje, através da nossa escolha por colocar quem somos a serviço do que acreditamos.
Todas e todos nós merecemos viver o câncer ao lado de nossas famílias nucleares e ampliadas, vivendo nossas crenças individuais e coletivas, com o apoio de amplas redes de afeto, com o apoio de nossos empregadores, fornecedores, sócios, parceiros e clientes enquanto acessamos exames e remédios de última geração sem precisar enfrentar altos níveis de dificuldade ou processos judiciais. Todas e todos nós temos direito a vivenciar jornadas de cura cada vez mais amorosas e gentis e isso precisa começar a acontecer agora dentro de nossas casas. Simples assim.
(artigo originalmente publicado na Claudia Online no dia 02/10/2023)
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