Manual prático de como matar boas ideias
A nossa profissão tem um poder de (r)evolução tremendo, e por isso precisa de lideranças corajosas. Não deixe boas ideias morrerem, elas podem mudar o dia de alguém
A nossa profissão tem um poder de (r)evolução tremendo, e por isso precisa de lideranças corajosas. Não deixe boas ideias morrerem, elas podem mudar o dia de alguém
26 de março de 2022 - 0h23
Imagine essa cena comigo.
Reunião de devolutiva da agência criativa, do brief que você passou 2 semanas atrás.
A agência abre com uma interpretação estratégica do seu desafio, baseada em 7 páginas de word, e alguns decks que você mandou para eles. Entra o time de criação, que te apresenta 3 possíveis caminhos criativos. Ainda bem conceituais, para explorar as possibilidades.
Você e os seus colegas ouvem atentamente, afinal já estão atrasados com o cronograma do projeto, então essa é uma reunião crucial para avançar as coisas. São 50 minutos de apresentação, e agora restam 10 para vocês conversarem, afinal a reunião foi marcada para durar uma hora, e você já tem outra na sequência. São 10 minutos de feedbacks vindos de diferentes pessoas, com diferentes ângulos. A reunião termina com a promessa de consolidar tudo por e-mail e mandar para o atendimento da conta.
Os diferentes feedbacks, com diferentes ângulos, são listados todos, juntos, e um e-mail longo que sai da sua caixa te dá a certeza de que agora a bola está do outro lado. O atendimento recebe e interpreta (ou encaminha) a mensagem, e agora a missão é decodificar e rever a apresentação que precisa acontecer logo, afinal a agência já trabalhou nela por 2 semanas e não chegou ainda aonde você esperava. E, claro, o cronograma está começando a apertar demais.
O projeto segue nesse ritmo. E, então, quando a ideia está mais formatada e com algumas execuções definidas, você apresenta para outros times internos, que dividem seus pontos de vista. E, aí, você volta para a agência com o feedback consolidado. E-mail enviado. A agência recebe e começa a trabalhar. E repete o processo até entregar uma campanha que tinha, lá no começo, potencial para ser incrível, mas que acabou entrando para a longa lista de ideias que não mudaram o dia de ninguém.
Nosso mercado tem muito dinheiro e muito alcance para não ser um agente fundamental de mudança. Para simplesmente se resumir em um monte de mensagens de produto que interrompem a vida das pessoas.
Lá por 2012 ou 2013 eu trabalhava na Heineken, e o CMO global na época, Alexis Nasard, estava no processo de consolidar a marca como global. Ele então, certa vez, abriu uma apresentação com um sonoro “Criatividade não é democracia”, e por meia hora falou sobre como um dos grandes fatores de sucesso de marcas fortes e inovadoras estava em não transformar o processo criativo na combinação de opinião de diferentes áreas, mas sobre encontrar os talentos certos e dar a eles recursos e autonomia para tomarem as melhores decisões criativas para uma marca. Usar pesquisa quando e se necessário. E, muito importante, construir relações com parceiros que você confie e que te complementem. Investir nessas relações. Dedicar seu tempo.
Você pode estar pensando agora que envolver diferentes áreas é essencial para o processo de desenvolvimento de uma ideia. Depende. A partir do momento em que a avaliação criativa dentro da sua marca vira apenas um processo de agregar todos os “eu achos”, esquece. O denominador comum da opinião de todo mundo é a mediocridade.
Não porque a criatividade está guardada somente para alguns talentos raros, escolhidos a dedo pelas Deusas para mudar o mundo, mas porque muitas pessoas não são realmente interessadas no processo criativo. Querem o resultado imaginado sem a confiança no processo. Querem o prêmio sem valorizar o craft. Querem impactar as pessoas de novas formas, porém apenas por meio dos caminhos já explorados.
A grande diferença mora na coragem. E só tem coragem quem tem paixão. Eu ando saudosa de encontrar pessoas apaixonadas pelo poder transformador da criatividade em nossa profissão. Aquelas que estão dispostas a lutar pelas grandes ideias, a bancar quando a maioria não está a favor, e se sentem confiantes em responder “não” para pedidos que vão diminuir o poder de uma ideia.
Portanto, eu gostaria de falar com você, que hoje está em uma posição com poder de decidir o destino de uma marca. Você, que gerencia pessoas e processos que envolvem comunicação, criatividade e conexão entre pessoas.
Eu tenho 3 perguntas para você:
Você tem paixão por criatividade?
Liderar a comunicação de uma marca implica em constantemente desenvolver e afinar o seu olhar. Em estudar, entender pessoas, respirar fora do mercado, se educar e se inspirar de forma constante.
Não apenas lendo um report do que rolou em Cannes e no SXSW. É uma constante dedicação de tempo e espaço mental para evoluir junto com as pessoas, as tecnologias e as conversas.
Você inspira o seu time a ir além?
Um dos maiores desafios é saber direcionar um time, permitindo que ele tenha espaço e liberdade para trazer a própria visão para a mesa. Ter os desafios claros, entender as barreiras, saber priorizar e conhecer as pessoas que estão contigo. Liderança boa é a liderança que serve, não a que manda.
Você confia nos seus parceiros?
Não tem sentido trabalhar com parceiros se você não vai ouvi-los. Foi-se o tempo de “o cliente manda, a agência obedece”. As agências e os parceiros são parte do time, e o melhor que você pode fazer é inspirá-los a amar o desafio tanto quanto você. Eu nunca vi uma ideia incrível sair de um time que não tem o menor prazer de trabalhar para uma marca.
A nossa profissão tem um poder de (r)evolução tremendo, e por isso precisa de lideranças corajosas. Não deixe boas ideias morrerem, elas podem mudar o dia de alguém. Ou mais.
Compartilhe
Veja também
Protagonismo de mulheres negras cresce no entretenimento da Globo
Kellen Julio, diretora de diversidade e inovação em conteúdo dos Estúdios Globo, fala sobre iniciativas da emissora para que o Brasil esteja refletido em suas obras
Maioria dos assédios no Brasil ainda ocorre no trabalho
Pesquisa "Mapa do Assédio", realizada pela KPMG, aponta ainda que tipificação de gênero é a segunda mais recorrente