O perigo de estar lúcida
Publicitários estão mais para vendedores que para artistas, mas isso não quer dizer que não possamos nos inspirar nos gênios para criar de formas diferentes
Publicitários estão mais para vendedores que para artistas, mas isso não quer dizer que não possamos nos inspirar nos gênios para criar de formas diferentes
11 de janeiro de 2024 - 6h19
Como novata no mercado editorial, mas veterana no planejamento estratégico, não pude deixar de notar as ondas temáticas de lançamentos de livros. Teve uma sobre o fim do mundo em 2020, seguida de uma considerável safra de obras lidando com o luto que dura até hoje. Mais recentemente, dois títulos foram lançados no mesmo mês tratando da associação entre criatividade e instabilidade mental: “O perigo de estar lúcida” (Todavia, 2023), da espanhola Rosa Montero, e “Maniac” (Todavia, 2023), do chileno Benjamin Labatut, que já tinha ficcionalizado a vida de gênios atormentados da ciência em “Quando deixamos de entender o mundo” (Todavia, 2022).
A leitura desses livros me fez refletir sobre a criatividade na publicidade. Entendo as dificuldades de fazer essa associação, já que o ambiente corporativo implica elementos distintos, para além da livre inventividade artística. São muitas as exigências e formatos definidos na criação para marcas, e depois, a necessidade de um resultado objetivo e eficaz, coisa que nem todo experimento criativo prescinde. Um é comércio, o outro é arte. No ambiente corporativo, debater as características necessárias para a criatividade tem sido uma temática sensível, uma vez que por muito tempo significou altos níveis de obsessão, energia sobre-humana e perfeccionismo para chegar no impacto desejado por agência, cliente e demais stakeholders. Sobretudo porque o tempo, o dinheiro e as condições envolvidas nem sempre estão à altura da demanda.
Publicitários estão mais para vendedores que para artistas. Mas ainda que o objetivo final seja a conversão, não quer dizer que não possamos nos inspirar nos gênios para criar de formas diferentes e inesperadas. Rosa Montero fala das substâncias de que artistas, especialmente escritores, fazem uso para trabalhar. Muito mais droga do que salada. Ela aponta a necessidade de silenciar o eu inconsciente e controlador, aquele que o tempo todo diz que você não é capaz, “não sabe nada, não vale nada, não vai conseguir, todos os outros são melhores, você é uma impostora, vai fazer um papel ridículo, renda-se de uma vez à adversidade.” Imagino que isso seja familiar a muitas. A brilhante Sylvia Plath dizia que “o pior inimigo da criatividade é a insegurança, a dúvida interna.” Como calar a vozinha que insiste no não?
Se por anos a crença foi na manutenção do gênio criativo e irascível, e no abuso de substâncias para se anestesiar, tenho lido sobre a importância do ambiente seguro para criar, e acredito cada vez mais nisso. Um lugar de possibilidades que por tanto tempo foi vedado às mulheres. Pois se aos homens foi dado o privilégio de serem considerados gênios criativos, a elas restou o diagnóstico de desequilibradas e descontroladas. Desse lugar me parece vir a ambiguidade do título do livro. Sem a possibilidade de extravasar seus impulsos criativos, coube à infinidade de mulheres criativas o olvido, e “O perigo de estar lúcida” fala de algumas delas, mas não é capaz de esgotar as limitações que gênero e raça impuseram à criatividade feminina.
E talvez sejam elas quem serão capazes de criar esse espaço de confiança e segurança para a inventividade. Porque é em um espaço que permite erros e convida para experimentações que a criatividade floresce, e não apenas no anulamento ou stress dos sentidos. Um lugar que também privilegia o “ritmo coletivo” na criação, o “fluxo de equipe” que estimula a contribuição de diferentes cabeças. As aspas são da Rosa Montero, que depois de tanto falar de gênios solitários, mais pra frente, no livro, compara criação a uma dança. Pode ser individual, mas é muito mais legal quando acontece junto.
Reconheço que não basta as empresas construírem esse espaço seguro. O ambiente familiar e afetivo das pessoas importa. A trajetória de cada uma, a maneira como suas sensibilidades e relações se desenvolveram, e quem ela é, na sua integralidade, afetam o trabalho criativo. O jeito que cada uma chega até o escritório conta, e muito, para a construção desse lugar de conforto e segurança. Mas penso que reconhecer e refletir sobre essas possibilidades é relevante. E sobretudo considerar a criação como resultado de um ambiente seguro coletivo como ponto de partida, para além de apenas insistir na falácia da necessidade de pressão e alta intensidade pela criatividade genial. Especialmente porque sem desmerecer a relevância do nosso ofício, não ganhamos Nobel, apenas vendemos.
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