Assinar
De 3 a 6 de março de 2025 I Barcelona – ESP
MWC

As divergências na jornada da governança da IA

Diferentes olhares dos países em relação à regulamentação da IA podem impactar debates brasileiros, analisam especialistas


3 de março de 2025 - 6h13

Apesar dos avanços e dos impactos positivos da inteligência artificial (IA) nas mais diversas áreas, a governança ainda é um desafio em aberto. Regulação, transparência e ética são pontos que seguem no centro dos debates, enquanto governos e empresas ao redor do mundo tentam equilibrar inovação e segurança. Nesse sentido, o desenvolvimento e uso da IA de forma responsável são questões urgentes no cenário global. Esse é um dos temas centrais da edição deste ano do Mobile World Congress (MWC), o maior evento de conectividade do mundo.

Governança da Inteligência Artificial

Governança da IA ainda é um desafio para os países (Crédito: Illerlock Xolmes e Svetazi/Shutterstock)

Os EUA, após a posse do presidente Donald Trump no segundo mandato, têm adotado abordagem distinta em comparação à administração anterior, de Joe Biden. Nos primeiros dias de retorno à Casa Branca, Trump revogou decreto que estabelecia padrões de segurança da tecnologia, o que era parte dos planos do ex-presidente Biden para preparar o terreno para a possível regulamentação.

Desde o ano passado, a determinação já era alvo de críticas do Partido Republicano, que pedia a revogação sob o argumento de que burocracias excessivas poderiam sufocar a inovação. O novo governo também adotou abordagem diferente do anterior sobre o impacto da IA em relação à discriminação e aos vieses algorítmicos, tema que era alvo de estudos no país.

Além da revisão e remoção de políticas do seu antecessor, Trump, em espécie de corrida tecnológica, prometeu “tornar os Estados Unidos a capital mundial da inteligência artificial”, a partir de relação mais próxima com as big techs. Líderes dessas empresas, entre as quais Apple, Amazon, Google e Meta, inclusive, estiverem presentes na cerimônia de posse de Trump, no dia 20 de janeiro.

Novas medidas

Por meio de decreto, o governo estabeleceu o prazo de 180 dias para a formação de plano de ação “para sustentar e aprimorar o domínio global de inteligência artificial dos EUA, a fim de promover o florescimento humano, a competitividade econômica e a segurança nacional”.

Como assunto prioritário, sobretudo após a startup chinesa DeepSeek abalar a liderança das gigantes americanas, o presidente dos Estados Unidos anunciou o Stargate, iniciativa privada que prevê injetar US$ 500 bilhões em infraestrutura de IA nos próximos quatro anos. O projeto será financiado por SoftBank e OpenAI, como parceiros oficiais, mas também conta com Arm, MGX, Microsoft, Nvidia e Oracle.

Trump adota postura “bélica” em cenário global que já estava inflamado e incerto, afirma o fundador da Rain A.I., Domenico Massareto: “É como se a agressividade fosse o pano de fundo da posse dele”. Por isso, juntamente com os lançamentos da China, para Massareto, tudo ganhou cara de guerra.

“De um lado, existe a preocupação com a cibersegurança, assunto debatido desde o começo dessa onda recente, impulsionada pela IA generativa (GenAI). Do outro, temos a IA tomando a forma de ferramenta das nações de dominação global. Esse contexto significa menos colaboração global e interesses integrados”, analisa.

Olhares divergentes

As movimentações norte-americanas rumo ao distanciamento de possível regulação são opostas às da União Europeia (UE), que aprovou no ano passado a histórica Lei de Inteligência Artificial, cujo objetivo, em equilíbrio com a inovação, é proteger os cidadãos dos danos potenciais. Nesse sentido, a legislação impõe regras e requisitos aos sistemas de IA conforme o risco que representam aos direitos fundamentais dos usuários.

Os impasses quanto à forma de lidar com o assunto fizeram com que, no mês passado, os EUA decidissem não assinar a declaração da Cúpula de IA de Paris, em que os países assumem o compromisso de que a IA seja aberta, inclusiva, transparente, ética, segura, protegida e confiável, o que leva em conta as estruturas internacionais “para todos”.

Além dos EUA, o Reino Unido não assinou a declaração e alegou que o documento não fornecia clareza prática sobre a governança global, o que demonstra a centralidade dessa questão. No total, 58 países aprovaram tal declaração, inclusive outros membros da União Europeia e a China.

No Brasil, o processo de regulamentação está em curso. Em dezembro do ano passado, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 2.338/2023. O texto estabelece marco regulatório para o desenvolvimento e uso de inteligência artificial a partir de inspirações em outras leis internacionais, especialmente as da UE.

O PL propõe a criação do Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial (SIA), coordenado pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). O SIA será responsável por regulamentar sistemas de alto risco, reforçar a competência de autoridades setoriais e realizar estudos frequentes para aprimorar a legislação, quando necessário.

O projeto de lei também aborda a proteção dos direitos autorais, com a exigência de que companhias de tecnologia informem quais conteúdos protegidos foram utilizados no treinamento de seus sistemas. O documento está em apreciação pela Câmara dos Deputados, onde será debatido e votado.

Futuro incerto

Para Massareto, diferentemente das últimas quatro décadas de economia globalizada, tudo indica que, geopoliticamente, as economias se tornarão mais fechadas, com os países mais inflamados. No campo da tecnologia, a situação tende a seguir o mesmo caminho. “Sempre estivemos acostumados a viver em um mundo onde compartilhamos a mesma tecnologia. Amadurecemos nesse contexto. Agora, parece que os países adotarão uma postura diferente”, pontua.

Nina da Hora, cientista de computação e pesquisadora, concorda que a mudança de governo aponta significativamente para regulamentações menos progressistas, sobretudo por conta da influência dos EUA em outros territórios. No momento, não existem certezas.

“São muitos fatores, não se sabe ao certo o quanto a China tem a contribuir no cenário de IA e o quanto descentralizar o desenvolvimento dos EUA pode contribuir para novos rumos. Ao mesmo tempo, não sabemos o quanto o isolamento americano pode dificultar os próximos quatro anos”, diz.

Impactos no Brasil

No âmbito brasileiro, a cientista acrescenta que, por causa da atual situação dos EUA, ainda há resistência de setores ligados ao desenvolvimento na compreensão de que a regulação não paralisa a inovação, mesmo que as discussões já estejam em andamento.

“Estamos conseguindo discutir os princípios éticos e os riscos, mas também tenho uma visão de que a aprovação do PL brasileiro pode demorar mais do que estávamos esperando justamente por conta dessa resistência do setor. Tenho receio de que até mesmo a discussão se paralise”, complementa.

O fundador da Rain A.I. não acredita no impacto direto dos EUA na regulamentação do Brasil, tendo em vista o alinhamento maior com a Europa. Para Massareto, o que pode modificar os debates locais é o posicionamento que a UE adotará frente ao acirramento da relação norte-americana e chinesa.

“O plano brasileiro envolve a colaboração com outros países. Dependendo de como outros lugares do mundo estiverem colaborando, deverá haver um pouco de impacto no Brasil, mas não acho que vamos retroceder nesse sentido. Somos inovadores sem essa necessidade de atestar dominância como potência”, avalia.

Em cenário complexo como o que se desenha, não existem respostas simples, diz a coordenadora do Comitê Gestor de Internet do Brasil (CGI.br), Renata Mielli. De fato, ressalta, essa confluência de interesses entre as big techs e o governo Trump e a consequente elevação do tom ao redor da IA pode oferecer riscos.

Renata explica que um processo de regulamentação tem várias dimensões, como a defesa dos direitos e busca de mitigação das externalidades negativas dos sistemas de IA. Existe, ainda, a esfera da soberania dos países, de participarem da conversa não somente como consumidores, mas como produtores da tecnologia. Ou seja, de fato, também é legítima a dimensão de uma IA que atenda a interesses específicos.

“A ofensiva dessas companhias, com o apoio do governo dos EUA, vai ao encontro de tudo isso. Isso pode ter impacto no sentido de que setores conservadores dentro do Brasil podem se alinhar para tentar fortalecer uma linha que seja contra o estabelecimento de regras para a prestação de serviço dessas empresas aqui”, finaliza.

Publicidade

Compartilhe