A beleza em ser dedo-duro
Seja lá qual for a razão, um denunciante tem que ter uma boa dose de coragem e altruísmo para fazê-lo
Seja lá qual for a razão, um denunciante tem que ter uma boa dose de coragem e altruísmo para fazê-lo
8 de março de 2025 - 17h39
Este ano escolhi seguir uma trilha de palestras que não tem a ver, necessariamente, com meu dia-a-dia. E a primeira delas foi a palestra “Are whistleblowers going to save us from the harms of tech?”, mediada por Delphine Halgand-Mishra, fundadora da “The Signals Network”, instituição sem fins lucrativos que protege e apoia os dedos-duros ao redor do mundo.
Estou traduzindo, propositalmente, whistleblowers como “dedo-duro”. Ficaria mais simpático traduzi-lo como “denunciantes”, mas dedo-duro provoca uma reação negativa em nós. Afinal, quem gosta de ser chamado de dedo-duro? Absolutamente ninguém.
Esse sentimento que repele é o primeiro de muitos outros que atormentam qualquer pessoa que decide denunciar uma corporação. Depois da negação inicial vem o medo – medo de dar o primeiro passo, mas, principalmente, das consequências que esse passo vai exercer na sua vida profissional e pessoal.
Sophie Zhang, ex-cientista de dados do Facebook e que em 2020 revelou o papel da empresa em permitir a manipulação política na sua plataforma, disse que tomar a decisão de denunciar é um caminho sem volta: sua vida muda completamente e, por isso, é vital receber um auxílio técnico e jurídico sobre como fazê-lo, apoiado em brechas legais que suportem sua denúncia.
Por exemplo, a SEC, orgão americano que regulamenta e protege o mercado financeiro e seus investidores, tem dispositivos que oferecem resguardo legal aos denunciantes que forneçam informações sobre uma empresa que pode estar prejudicando seus investidores. Se um denunciante seguir essa rota jurídica, terá apoio legal no futuro. Mas, como Sophie também disse, muitos não têm esse conhecimento.
Por isso, é muito importante que instituições como a “The Signals Network” – que protege não só os denunciantes, como também os jornalistas que fazem a cobertura desse tipo de caso. Em 2024, a média de novos pedidos de proteção nessa instituição girava em torno de três solicitações por semana; em 2025, esse número aumentou drasticamente devido às mudanças políticas nos Estados Unidos, com a média de pedidos subindo para 10 por semana logo nos dois primeiros meses deste ano. Segundo Delphine, as empresas dos setores de Tecnologia e Saúde são as principais denunciadas, e isso se dá por conta dos crescentes desafios éticos dentro dessas indústrias.
Mas nem todos os caminhos têm base legal de suporte. Billy Perrigo, repórter investigativo de tecnologia da revista Time, que cobriu denúncias da OpenAI e Facebook, enfatizou a falta de proteções legais para denunciantes do setor de inteligência artificial. Ao contrário dos casos em que os denunciantes podem provar fraude de investidores e buscar proteção sob os regulamentos da SEC, as divulgações relacionadas à IA frequentemente caem em uma área cinzenta, sem um recurso legal claro. Essa falta de regulamentação deixa os denunciantes vulneráveis a riscos legais e profissionais significativos.
Por fim, Sophie Zhang ofereceu conselhos práticos para aqueles que, apesar dos riscos, consideram se tornar denunciantes, entre eles:
Ao final, Delphine, do “The Signals Network”, acrescentou ainda um último item à lista de Sophie: ter um objetivo claro sobre a razão da denúncia.
Para mim, seja lá qual for a razão, um denunciante tem que ter uma boa dose de coragem e altruísmo para fazê-lo. E depois da palestra, ficou claro como responder à pergunta inicial “Whistleblowers can save us from the harm of tech?”. A resposta é “sim”: os denunciantes não vão nos salvar dos abusos das grandes corporações, mas definitivamente eles têm papel chave para revelar tais abusos e fomentar mudanças dentro dessas corporações e da nossa sociedade.
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