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Opinião

Não importa se aconteceu com você. Importa que aconteça

Quando mulheres que formam opinião se posicionam a partir apenas de sua própria condição, escolhem colaborar com a repetição de erros históricos e ignorar que ainda existem mulheres sendo subjugadas


24 de janeiro de 2017 - 9h58

mulheres

Foto: Reprodução

Durante uma entrevista para TV em 1975, o jornalista Jean-Louis ServanSchreider perguntou a Simone de Beauvoir por que uma intelectual de títulos e doutorados tinha descoberto apenas aos 40 anos — enquanto escrevia O Segundo Sexo, publicado em 1950 — uma realidade sobre a condição feminina que parecia ter estado sempre disponível. Beauvoir respondeu: “Porque eu estava vivendo minha própria condição de intelectual.” Em outras palavras, ela estava vivendo sua própria vida e observando a realidade feminina a partir de um, até então, limitado conjunto de referências.

Creio que é isso que acontece hoje — quase 70 anos depois da publicação do livro que levou Simone de Beauvoir a olhar além de sua própria condição —, quando mulheres com poder político, hierárquico ou apenas midiático, se posicionam como não feministas por nunca terem sofrido preconceito, discriminação ou assédio. Elas estão vivendo (e representando) sua própria condição. Se isso aconteceu com uma das maiores intelectuais do século 20, é natural que aconteça com qualquer uma de nós. Correto? Na verdade, não.

Em 2017, depois de tantas revelações, depoimentos, estudos, estatísticas discutindo o modelo que colocou gerações inteiras de mulheres em uma posição secundária, quando mulheres que formam opinião se posicionam a partir apenas de sua própria condição, escolhem colaborar com a repetição de erros históricos e ignorar que, independentemente de tudo estar indo bem em casa, ainda existem mulheres sendo subjugadas, discriminadas, assediadas, violentadas na nossa rua, na casa ao lado, na nossa cidade ou mesmo nas nossas empresas.

Sei que essa não é uma conversa fácil. Tenho falado muito a respeito com mulheres incríveis, que ganharam relevância e visibilidade graças a muito talento e trabalho, e que hoje se veem convidadas a discutir assuntos relacionados a uma visão de mundo que elas desconhecem ou não compartilham. Ouço mulheres pelas quais tenho grande respeito afirmarem que as empresas precisam contratar talentos, não homens nem mulheres, sem se perguntar por que e como em um passe de mágica começamos a ver tantas mulheres talentosas. Onde mesmo elas estavam antes?

Também ouço frequentemente executivas que admiro pelo talento e pela determinação se colocarem contrárias a uma discussão mais abrangente e efetiva envolvendo o assédio. Todos parecem temer muito falar sobre assédio

Também ouço frequentemente executivas que admiro pelo talento e pela determinação se colocarem contrárias a uma discussão mais abrangente e efetiva envolvendo o assédio. Todos parecem temer muito falar sobre assédio. É compreensível. É difícil acreditar que algo assim existe e é quase impossível lidar com a ideia de que pessoas que amamos, respeitamos, admiramos, mesmo que muitas vezes não intencionalmente, expõem mulheres a situações de constrangimento ou mesmo de violência.

Além disso, existem histórias de homens pelo mundo que já se viram colocados em situações de grande perda, consequência de denúncias falsas. Mas creio que não mais do que a quantidade de mulheres que se viu em situação de grande perda em consequência da desvalorização, da culpa e da insegurança geradas pelo assédio. Pense bem. Não importa se aconteceu com você, importa que aconteça.

No final do ano passado, durante a Conferência do Grupo de Planejamento, Laura Chiavonne, Carla Alzamora, Gabi Terra e eu falávamos sobre o que vimos na 3% Conference em New York, quando Renata Lodi, creative soutions manager do Spotfy no Brasil, pediu a palavra e disse algo mais ou menos assim: “Estou ouvindo vocês falarem sobre a questão da mulher, o machismo, a discriminação e eu queria perguntar uma coisa: e o assédio? Concordo com a visão de que o machismo é uma questão cultural, que temos de resolver com educação, mas não penso o mesmo sobre o assédio. Acho que temos de separar as coisas. “Machismo se resolve na escola, com educação, assédio se resolve na Justiça.” Renata contou para todos ali sua história com o assédio, o que me levou a pedir que as mulheres presentes que já haviam vivido algo semelhante levantassem a mão. Foi um momento triste ver todas aquelas mulheres, de diferentes idades, com as mãos para o alto, em silêncio, como que em um ato de respeito ao que estava acontecendo ali e como se estivessem à espera de uma resposta.

Mas este não é um artigo sobre feminismo. Nem sobre assédio. É um artigo sobre o valor e o poder transformador das pessoas, principalmente daquelas que têm o privilégio de serem ouvidas, de formar opinião, de influenciar

Mas este não é um artigo sobre feminismo. Nem sobre assédio. É um artigo sobre o valor e o poder transformador das pessoas, principalmente daquelas que têm o privilégio de serem ouvidas, de formar opinião, de influenciar. É sobre essas pessoas e suas capacidades de serem empáticas e de usar o que aprendem por meio da história da humanidade e da história de pessoas — conhecidas ou não — para reconhecer realidades diferentes das que vivem e ajudar a mudar as regras, criar novas condutas, implementar novos conceitos, corrigir, proteger, denunciar, acolher, punir, melhorar.

Enquanto escrevia O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir teve uma epifania, gerada pelo contato com a vida de mulheres diferentes dela —  algumas que ela jamais conheceu — e escreveu um livro histórico, cuja importância ideológica foi comparada a O Capital, de Karl Marx. Tudo bem, jamais vamos nos aproximar de algo assim, mas — não tenha dúvida —, se alguém está te fazendo uma pergunta na frente de dezenas ou centenas de pessoas, se alguém quer publicar o que você pensa, se está sendo homenageada ou recebendo prêmios que te colocam em posição de destaque, se foi eleita, se está nas suas mãos tomar decisões que afetam a vida das pessoas, você certamente pode fazer muito mais pelo mundo à sua volta do que fez até agora.

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