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Fayda Belo: “A maioria das mulheres sofre violência no trabalho em silêncio”

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Fayda Belo: “A maioria das mulheres sofre violência no trabalho em silêncio”

A advogada especialista em crimes de gênero analisa os impactos da violência contra as mulheres no ambiente corporativo


25 de novembro de 2024 - 9h44

Os dados não mentem. Em 2022, mais de 200 mil mulheres sofreram algum tipo de violência no Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). No ano passado, a taxa de feminicídio aumentou 6,6%, chegando a 1.437, o maior número desde 2015. Outras agressões também tiveram aumento, como violência doméstica, ameaças, perseguição e stalking, violência psicológica e estupro. A violência de gênero, entretanto, não se restringe apenas ao ambiente doméstico, mas também se manifesta no trabalho.  

Uma pesquisa do Think Eva revelou que 47% das entrevistadas afirmaram terem sido vítimas de assédio sexual no ambiente de trabalho. Delas, 52% eram mulheres negras e 49% recebiam entre dois e seis salários mínimos. Ou seja, a violência afeta as mulheres de forma desigual, em que marcadores sociais agravam a possibilidade de sofrerem assédios. Os impactos disso vão além das carreiras e da saúde das mulheres, e trazem consequências para as organizações e a economia. 

Na entrevista a seguir, Fayda Belo, advogada especialista em crimes de gênero, direito antidiscriminatório e feminicídios, explora como essa violência se manifesta e os impactos na vida das mulheres, na economia e nas organizações. Além disso, aborda a responsabilidade das empresas em criar ambientes seguros e inclusivos e discute a importância da presença feminina nas lideranças para o combate à violência. 

De que maneira a violência de gênero impacta a economia? 

Sempre gosto de começar com um esboço histórico para entender de onde vem o que vivemos hoje e como podemos moldar o amanhã. O Brasil foi colonizado e, com isso, a Europa trouxe um modelo em que o homem era o líder e a mulher apenas um adereço, destinada a dar herdeiros. Junto com isso, veio a forte influência religiosa que moldou nossa cultura e as leis, definindo o papel da mulher na comunidade e em casa. E foi assim que nossa sociedade brasileira nasceu: por homens e para homens. 

Claro, ao longo dos anos, houve avanços, mas é importante entender que essa hierarquia de gênero foi uma política pública. A violência de gênero também foi uma política de Estado. Não é simples, em 2024, encontrar uma solução mágica para esse problema, já que nosso País foi construído sobre essa ótica, e ainda hoje, carregamos resquícios disso.  

No entanto, a mulher hoje tem a possibilidade de ocupar espaços no trabalho e na liderança, mas eles não foram construídos para ela. A sociedade ainda carrega estereótipos de gênero sobre o que é um lugar de homem e um lugar de mulher, e o mercado de trabalho e os postos de liderança, infelizmente, ainda são vistos como espaços de homens. 

Por isso, muitas mulheres que ocupam esses cargos acabam reproduzindo comportamentos masculinos. Elas pensam que, se não agirem como homens, não serão respeitadas ou perderão o espaço. Isso acaba gerando uma violência constante contra a mulher, mesmo quando ela ocupa esses lugares. E a violência de gênero não impacta apenas a mulher individualmente.  

Um estudo da Fiemg (Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais) mostrou que, em 10 anos, a violência de gênero pode impactar o PIB do Brasil em 214 bilhões de reais. Não estamos falando apenas de uma questão ética ou social, mas econômica, que afeta a produtividade das empresas, pois uma pessoa que sofre violência não consegue produzir como deveria. 

O trabalho, para muitas mulheres, é uma extensão de sua casa, já que muitas passam mais tempo nele do que em casa. E quando falo “extensão da casa”, é importante lembrar que a violência não se resume à violência doméstica. O homem abusivo e misógino que existe dentro de casa também tem um emprego e, muitas vezes, reproduz a mesma violência que exerce em casa no ambiente de trabalho.  

Não podemos colocar essa questão apenas no colo do poder público. A violência contra a mulher é uma responsabilidade compartilhada, que afeta todos os setores, não somente as casas ou o judiciário, mas também as organizações. Enquanto ignorarmos isso, as mulheres seguirão perdendo dinheiro e oportunidades. 

Quais as formas de violência de gênero que podem existir no ambiente de trabalho? Como ela se manifesta? 

O espaço de trabalho não foi idealizado para o corpo da mulher, e por isso ela não é vista como uma pessoa competente, como alguém que está ali porque pode, deve e tem a bagagem para ocupar esse espaço. Essa violência se manifesta de diversas formas, sendo muitas vezes crimes contra a honra, como injúrias, palavras de baixo calão sobre sua aparência, corpo, família e vida íntima. Essas ofensas visam sempre atacar a reputação da mulher, porque, no Brasil, historicamente, a mulher considerada desonesta não tinha sequer direito ao amparo do judiciário. Esse conceito estava na lei até 2005, quando o termo “mulher honesta” foi removido do código criminal. Estamos em 2024, e, apesar disso, as ofensas ainda têm como alvo a honra da mulher, para impedi-la de exercer livremente seu trabalho. 

Além disso, sabemos que o assédio moral acontece diariamente em muitas empresas e em diversos espaços, afetando tanto homens quanto mulheres. No entanto, no caso das mulheres, as violências são frequentemente realizadas de maneira a fazê-las adoecer e sair do emprego, como se fosse uma réplica da ideia de que elas suportam menos. Isso inclui a violência psicológica, que, embora muitas pessoas a associam apenas à violência doméstica, é um crime no contexto geral, inclusive no ambiente de trabalho.  

A violência psicológica é caracterizada por qualquer ação que cause dano emocional à mulher, que invada sua autonomia, retirando-lhe o direito de escolha, de resposta e de fala. Isso é o que acontece: a mulher é tratada de tal maneira que perde a coragem de expor suas opiniões naquele ambiente. Quando compartilha suas ideias, ela é rechaçada, humilhada, constrangida, algo que não acontece com os homens. 

Como a violência pode afetar a segurança financeira das mulheres? 

Temos muitos recortes importantes quando falamos sobre violência contra a mulher. Um deles é a violência patrimonial. Mesmo que a mulher tenha um emprego ou seja dona do seu próprio dinheiro, muitas vezes ela não é realmente dona dos seus recursos. O dinheiro é administrado pelo homem. Isso ocorre em diferentes contextos, como no de mulheres como Patrícia Ramos e Ana Hickman, que, apesar de estarem financeiramente independentes, cedem o controle financeiro ao parceiro. Esse tipo de relação pode resultar em violência patrimonial. 

No contexto doméstico, a mulher pobre muitas vezes é manipulada com uma troca: “se você for embora, vai passar fome”. Ou seja, ela é impedida de trabalhar para cuidar dos filhos, o que a priva de acesso aos recursos financeiros. Já a mulher letrada e empregada, mesmo tendo sua independência financeira, também não gerencia seus próprios recursos, pois o homem ainda assume esse papel. Por outro lado, temos a Constituição Brasileira de 1988, que estabelece que homens e mulheres têm direitos e obrigações iguais. Porém, na prática, em 2023, uma nova lei foi necessária para reafirmar o que a Constituição já dizia, pois as mulheres ainda ganham cerca de 20% a menos que os homens. 

Precisamos entender de que mulheres estamos falando, pois os dados variam conforme o recorte. Para mulheres com deficiência, a diferença salarial é de 26%. Para mulheres negras, chega a quase 48%. E, para mulheres trans, apenas 5% têm emprego registrado. Ou seja, o problema é muito mais profundo. Quando falamos em mulheres, precisamos abordar todas elas, porque não são uma categoria única. Somos plurais, e garantir direitos apenas para algumas mulheres é um retrocesso. 

Esse impacto de desigualdade salarial, que contraria a lei, faz com que a mulher não apenas seja violentada no ambiente de trabalho, mas também receba menos pelo mesmo trabalho. Ela ocupa o mesmo cargo e desempenha a mesma função que o homem, mas ganha menos. Isso é um reflexo da visão social de gênero, ou seja, da ideia de que existem papeis determinados para homens e mulheres na sociedade. 

De que maneira as empresas podem combater o assédio e a violência de gênero internamente? 

É fundamental que as empresas compreendam que a responsabilidade de resolver a violência contra a mulher não é exclusiva da lei ou do poder público. A violência afeta diretamente o ambiente corporativo, e as empresas precisam investir na prevenção. Muito se fala sobre ambientes corporativos equânimes, sobre a importância da equidade de gênero. Porém, o debate acaba sendo raso, pois não adianta ter um ambiente igualitário se ele não for seguro para que a mulher possa desenvolver suas habilidades. Portanto, a equidade precisa vir acompanhada de segurança. 

As companhias devem investir em treinamentos e educação sobre direitos, conforme determina a legislação de 2022, que obriga empresas com mais de 20 colaboradores a garantir que as mulheres se sintam parte da organização. Isso passa por ter políticas internas de prevenção, como workshops e palestras. Além disso, é essencial que a mulher tenha a confiança de que, se for vítima de violência, a empresa tomará medidas. Isso envolve não só o RH, mas também uma comissão responsável por apurar, ouvir a vítima e realizar um processo interno ético e imparcial, garantindo que o caso tenha uma resposta. 

Não estou falando de garantir o resultado desejado pela vítima, mas que ela tenha uma resposta. Muitas mulheres denunciam, mas não têm retorno, o que faz com que optem por não relatar a violência. O primeiro motivo é a desconfiança de que algo seria feito. O segundo é o medo de que isso afete sua carreira. A maioria das mulheres sofre assédio e violência no ambiente corporativo em silêncio, com medo de perder oportunidades de crescimento profissional. 

Portanto, as empresas precisam criar um ambiente seguro para homens e mulheres. Além disso, precisamos parar de falar de violência contra a mulher apenas para as mulheres. A violência não foi criada pelas mulheres, mas pelos homens. Por isso, é essencial incluir os homens nesse debate, para que possam ajudar a construir espaços públicos e privados que sejam equânimes, seguros e que reconheçam a mulher como um indivíduo com os mesmos direitos de exercer seu trabalho sem sofrer abusos ou violência.  

Lembremos que, em sua grande maioria, os homens ainda têm o poder de decisão, e excluí-los desse processo é simplesmente rodar em círculos, perdendo uma mão de obra que pode e deve colaborar para criar um ambiente corporativo não apenas igualitário, mas seguro para todos. 

Quer acrescentar algo? 

A ausência de mulheres em posições de liderança contribui para que a violência persista. É essencial reconhecermos o papel crucial da liderança feminina nesse processo. Quando a mulher ocupa um cargo de liderança, ela traz consigo a perspectiva de quem já esteve em posições mais baixas e entende o quão doloroso, tóxico e prejudicial à saúde mental é estar em uma organização sem políticas firmes de prevenção e combate à violência. 

Todas as violências contra as mulheres nas organizações são consequências dessa ideia de que o corpo feminino não foi pensado para esses espaços. Portanto, à medida que mais mulheres ocupam cargos de gerência e liderança, isso normaliza a presença feminina e, por consequência, ajuda a reduzir a violência no ambiente de trabalho. 

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