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Flávia Oliveira: jornalismo socioeconômico, racismo e desigualdade

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Flávia Oliveira: jornalismo socioeconômico, racismo e desigualdade

A jornalista da GloboNews, que completa 30 anos de carreira, tem uma trajetória de vanguarda no jornalismo econômico ao cobrir pobreza, racismo e desigualdades sem esconder suas origens como mulher negra da periferia


1 de dezembro de 2022 - 10h51

Flávia Oliveira

Flávia Oliveira, jornalista e comentarista na GloboNews, está na vanguarda do jornalismo socioeconômico e tem olhar sensível para o racismo e a desigualdade (Crédito: Globo/Manoela Mello)

Pobreza, racismo e desigualdade se tornaram pautas cada vez mais importantes na cobertura jornalística, mas por muitos anos foram abordadas quase exclusivamente por quem jamais sentiu na pele o preconceito e a insuficiência de renda. O jornalismo econômico, então, por séculos teve uma cara no Brasil: o homem branco. Mas a jornalista Flávia Oliveira está à frente na mudança dessa lógica. Mulher negra nascida e criada no subúrbio do Rio de Janeiro, ela não apenas cobre temas sociais, econômicos e raciais há 30 anos: tem lugar de fala sobre eles. 

“Minhas origens no território, na raça negra, no ensino público gratuito e numa família essencialmente de mulheres e de chefia feminina explicam muito meu destino e sobretudo meu olhar sobre a sociedade, que é muito marcante no meu trabalho”, conta ela. 

Comentarista de economia da GloboNews e um dos grandes destaques na cobertura das Eleições de 2022 do canal, Flávia sempre se sobressaiu por ser uma profissional voltada para ciências humanas, mas com grande capacidade de leitura e interpretação de números. Em termos mais técnicos, ela protagonizou e esteve na vanguarda do que hoje se chama de jornalismo socioeconômico.  

Com posicionamento firme, ela atribui o feito ao apoio recebido por seus pares e pela audiência, mas também à mãe já falecida, a baiana dona Ana Lúcia, funcionária de uma companhia de seguros que comprou um apartamento de 33 metros quadrados em um conjunto habitacional no Irajá, zona norte da capital carioca, para criar a filha praticamente sozinha dos 2 a 22 anos. Era época dos programas habitacionais ligados a cooperativas profissionais.  

“Fui criada e sou produto dessa mulher negra, mãe solo. Hoje, há várias denominações para isso, mas naqueles tempos era somente ‘mulher largada pelo marido’ mesmo”. O pai de Flávia viveu com elas até seus 7 anos. Depois, foi embora.  

Outra vivência importante da jornalista, que se tornou repertório em seu trabalho, foram as longas distâncias e travessias da cidade. Fossem as subjetivas, do ponto de vista da escolaridade e da renda da sua família, como as objetivas, devido à distribuição desigual do equipamento cultural e do mercado de trabalho, que a impactavam diretamente.  

A mãe de Flávia trabalhava no centro do Rio de Janeiro. Eram aproximadamente 30 quilômetros a serem vencidos todos os dias. Desde nova, a jornalista também passou a fazer essas travessias. Fez o Ensino Médio na Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE), onde concluiu sua formação técnica em estatística, o que explica sua entrada no jornalismo econômico. Depois, cursou jornalismo na Universidade Federal Fluminense, que ficava a 45 quilômetros de Irajá, uma distância percorrida parcialmente a barco.  

“Sempre compreendi a cidade e suas travessias, e o que significa quando se fala em desigualdade, e isso me posicionou em relação às agendas que evoluíram. O debate político, econômico e social foi se deslocando na direção de um espaço que eu já ocupava naturalmente, e crescia com ele. Meu jornalismo sempre foi sobre identificar e chamar atenção para isso.” 

A solidão de estar na vanguarda  

Entre muito suor, oportunidades aproveitadas e o olhar sensível a uma agenda social por vezes confundida com a própria vida, Flávia desbravou o jornalismo de dados, a socioeconomia e a representatividade negra na profissão muito antes de entrarem em evidência. Hoje, as três áreas foram incorporadas pelos grandes veículos da imprensa, em um caminho que vem sendo traçado pela jornalista desde o início de sua carreira, quando ingressou no Jornal do Commercio, em 1992. Dois anos depois, ela chegou ao jornal O Globo, onde é colunista atualmente, e, em 2009, passou a integrar a GloboNews como comentarista. Ela viveu as intensas transformações da profissão, das reportagens datilografadas na máquina de escrever ao momento hipertecnológico atual, sem nunca perder seus objetivos com o ofício e a compreensão socioeconômica do que é o trabalho. 

“Agora, o celular e eu somos uma unidade de produção. Posso gravar vídeos, fazer pesquisas, entrevistas, mandar áudios, fazer fotos e filmar, tudo com minha mão direita e minha voz. Do ponto de vista da produção democrática de conteúdo, é revolucionário. Antes, eu precisava do empregador que me desse a máquina de escrever, de uma gráfica para imprimir, do papel e da logística de distribuição.” 

Apesar das vantagens da nova era da informação e da tecnologia, Flávia assume que essa realidade a consome intensamente, pois faz parte da profissão. “Trabalho além do razoável. O jornalismo de televisão é muitas vezes glamurizado, porque estamos sempre arrumadas e maquiadas no ar, mas minha rotina é o avesso disso. Estudo muito, acordo de madrugada para entrar nos sites e nas redes sociais e ver se aconteceu algo.” 

Flávia Oliveira

Flávia Oliveira: “O jornalismo de televisão é muitas vezes glamurizado, porque estamos sempre arrumadas e maquiadas no ar, mas minha rotina é o avesso disso” (Crédito: Globo/Manoela Mello)

Flávia conta que sua trajetória foi muitas vezes solitária, seja por ter sido a única ou uma das poucas mulheres negras nos ambientes de trabalho, que no início da sua carreira eram dominados pela classe média branca, como também pelo nível de consciência racial dos poucos colegas negros que tinha. Ela lembra que sua primeira matéria sobre a questão racial foi publicada em 1995, em O Globo, sobre o IDH de pretos e brancos. Depois, em 1996, ao voltar da licença-maternidade de sua filha, a jornalista Isabela Reis, chamou atenção para a aparição de uma pessoa negra em uma propaganda do Bradesco, raridade na indústria da publicidade na época. 

“Quando comecei, muitas pessoas negras não tinham o letramento racial no nível que temos hoje. Isso se manifestava em solidão para mim. Mesmo entre nós, negros, não havia tão intensa e explicitamente um diálogo sobre racismo e desigualdades. Agora, há muito mais gente e mais jovens.” 

Flávia diz que sua atuação rendeu a ela várias amigas mais novas. Pesquisadoras, médicas, professoras universitárias e jornalistas se aproximam da profissional por uma sensação de que ela abriu caminho para todas, num mercado de trabalho dominado pela classe média branca. “Isso é bom. Vejo pessoas negras mais visíveis na nossa profissão como jamais vi anteriormente.” 

A jornalista acredita, porém, que ainda há muitas distâncias a serem superadas no jornalismo, nas empresas e na sociedade. “Alguns debates não dependem somente de pessoas negras, mas parece que sim. Brancos podem falar de racismo. Não sou setorista do tema. Sou uma jornalista, comentarista de política, de economia, de indicadores sociais. Não sou comentarista de racismo, mas às vezes dá a impressão de que sou, em razão de uma deficiência de formação e letramento da sociedade brasileira. O sistema educacional não ensina, a universidade não ensina. Então sinto uma solidão atenuada, mas não totalmente superada.” 

O futuro do jornalismo 

Quando pensa na questão racial no jornalismo, Flávia reflete que, embora haja uma demanda de consumo crescente por diversidade sendo atendida, é preciso compreendê-la de maneira mais ampla. Não tem a ver somente com a cor de pele dos profissionais visíveis na televisão, por exemplo, mas com toda a cadeia de produção jornalística. 

“Deve haver diversidade nas chefias, nos bastidores, na fotografia. Na forma como as pautas são estruturadas, como as fontes são escolhidas e os personagens são retratados. Na maneira como existem ou não profissionais de opiniões diversas. Opinião é absolutamente fundamental no jornalismo. Não adianta termos centenas de repórteres negros e meia dúzia de comentaristas pretos. Em todos os ambientes, quem opina e forma opinião ainda são os homens brancos mais velhos. Então, a desejável ampliação da diversidade ainda não está no tamanho correto e nem atravessa funções e níveis hierárquicos. E isso não é só no jornalismo. É no cinema, na literatura, no teatro, na política e no judiciário.” 

Flávia Oliveira

Flávia Oliveira: “Em todos os ambientes, quem opina e forma opinião ainda são os homens brancos mais velhos. Então, a desejável ampliação da diversidade ainda não está no tamanho correto e nem atravessa funções e níveis hierárquicos” (Crédito: Globo/Manoela Mello)

Flávia responde sobre o futuro do jornalismo após um suspiro aliviado de uma profissional que não escondeu suas posições nos últimos anos. Diz esperar o que chama de restituição da normalidade. “Não foi normal. Foi um ambiente profundamente violento, autoritário e avesso ao debate. Fomos mais que jornalistas, fomos guerreiras e guerreiros. Sobreviver nessa profissão foi um exercício para além do que seria razoável de qualquer profissional. Sofremos por exercer a profissão, nada mais do que isso.” 

Segundo ela, é comum que o jornalismo incomode interesses, crenças, posições ideológicas e valores e, para isso, existem debates, direito de resposta, réplica e a própria justiça. Mas o que ocorreu recentemente, diz Flávia, foi a criação de uma organização voltada aos ataques, à difamação, à ofensa e à humilhação, no limite ao risco de agressão física, a ponto de ela ter receio de frequentar alguns lugares públicos.  

“Passamos a compor uma profissão de risco. Tivemos que estudar protocolo de segurança física e digital, trancar nossas redes sociais, esconder fotos de familiares. Isso não compõe um ambiente democrático, mas passamos por isso. Parece pouca coisa, mas foi muito violento insistir na profissão e não se intimidar. O que Vera Magalhães, Miriam Leitão e Patrícia Campos Mello passaram são exemplos disso. O Dom Phillips foi assassinado porque era jornalista. Morreu por isso. Se não fosse jornalista, estava vivo. Todo dia era uma pequena violência. Mas insistimos e sobrevivemos. Quero voltar a falar sobre meus indicadores, apontar os discursos equivocados, racismo e abusos sem me sentir numa atividade de risco.” 

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