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Furacão Milton: a transformação da tragédia em entretenimento 

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Opinião

Furacão Milton: a transformação da tragédia em entretenimento 

Precisamos urgentemente refletir sobre como a espetacularização da vida – especialmente das tragédias – afeta nossa capacidade de ação 


24 de outubro de 2024 - 10h25

Não sei vocês, mas me peguei acompanhando, hora após hora, os updates de pelo menos 15 perfis que viralizaram durante os furacões Helene e Milton, que atingiram o Golfo do México e a Flórida nas últimas semanas. Entre eles, a história de Joseph Malinowski, mais conhecido como Lieutenant Dan, um homem que vivia em um barco e sobreviveu após o criador do TikTok, Terrence Concannon (@terrenceconcannon), postar uma série de vídeos sobre sua experiência durante o furacão Helene.  

A história de Dan ganhou tanta notoriedade que foi parar em noticiários, e outros tiktokers começaram a arriscar suas vidas para tentar mostrar “o homem pobre, vivendo à deriva em um barco velho”, enquanto dormia durante a passagem de um furacão. 

Segui, com muita irritação, uma mulher rica em uma casa de concreto. Contudo, após muitas horas sem atualizações, fiquei preocupada, afinal, trata-se de uma vida. E as ações do grupo Ireland Boys Productions (@irelandboys), que literalmente dirigiam em direção ao furacão sem qualquer experiência, apenas para fazer uma live.  

Fiquei vidrada no perfil de uma médica de emergência de Tampa, cidade da Flórida, que levou os filhos para o trabalho porque o hospital era um dos abrigos mais seguros. Chorei ao acompanhar os relatos de Sarah, dona de uma fazenda de hobby (@oursimplehomestead), que não evacuou porque tinha muitos filhotes de animais e não havia como levá-los. 

Tudo isso foi compartilhado: lágrimas, cenas cuidadosamente pensadas de todos os ângulos. Gente anunciando lives do furacão em diversas plataformas. Perdi a conta de quantos vídeos vi de pessoas perguntando: “Alguém tem notícias de fulano ou ciclano? Sinto que minha vida agora é me preocupar com pessoas que nem conheço”. A pergunta que fica para mim é: qual o limite da espetacularização da vida?  

Vale lembrar que, durante as enchentes no Rio Grande do Sul, chamei atenção para um fenômeno crescente: a exploração de tragédias para gerar cliques e engajamento nas redes sociais. Agora, com o furacão Milton, essa tendência atingiu um novo patamar, com pessoas deliberadamente colocando suas vidas em risco para transmitir ao vivo.  

O furacão, que se intensificou de forma surpreendente, passou de categoria um para cinco em um curto espaço de tempo, levando o governo local a tomar medidas severas de evacuação. Mesmo assim, o espetáculo continuou. Importante pontuar que, mesmo para quem cresceu na Flórida, o furacão foi assustador. 

Esse fenômeno de transformar a tragédia em entretenimento é uma expressão clara do que Guy Debord chamou de “sociedade do espetáculo”. Em sua obra homônima de 1967, Debord descreve como a vida moderna é dominada por imagens e representações que substituem a experiência direta da realidade.  

No contexto do furacão Milton, vemos exatamente isso: o evento catastrófico é mediado e transmitido por smartphones e plataformas sociais, transformando a tragédia em um produto visual consumível. E não para por aí: aqueles que viralizaram já se tornaram “produtos”. Surgiram séries sobre a destruição pós-furacão, com gente anunciando reformas e até publicidades de produtos para se preparar para o próximo furacão. 

Na era digital, a crítica de Debord torna-se ainda mais pertinente, conectando-se à pesquisa de André Alves e Lucas Liedke, da plataforma Float, que introduziram o termo “capital conteúdo”. O conceito se refere à vida como produto de entretenimento, e, para mim, parafraseando livremente Descartes: “Posto, logo vivo”, porque se não está online, não aconteceu.  

A cultura da imagem e da aparência superficial que Debord descreveu se materializa nas redes sociais, onde eventos extremos viram conteúdo viral. Com a crise climática gerando cada vez mais eventos extremos, isso é uma receita para viralização. Alguns podem argumentar que estão prestando um serviço informativo, mas, na realidade, é mais um vlog vazio. O jornalismo responsável segue sendo muito necessário. 

As imagens de furacões, enchentes, florestas em chamas e geleiras derretendo inundam nossos feeds, mas muitas vezes não geram ações concretas. Ao invés disso, criam uma sensação de distanciamento. Quando adicionamos histórias reais e personagens, quando seguimos a “jornada do herói”, as pessoas se sentem “conectadas” aos eventos. Isso acontece porque tendemos a nos identificar com o familiar. Mas essa conexão, muitas vezes, não leva a uma compreensão profunda ou a uma resposta significativa. 

Além de transformar eventos climáticos em espetáculos, essa dinâmica promove a passividade. Debord argumenta que o espetáculo divide a sociedade e encoraja a apatia. As imagens poderosas de desastres naturais acabam sendo consumidas sem provocar mobilização real.  

Isso é visível na maneira como as redes sociais e a mídia cobrem eventos como o furacão Milton: o foco está na transmissão ao vivo e no impacto visual, em vez de incitar uma discussão sobre as causas profundas, como a crise climática e a preparação inadequada das regiões afetadas. 

Precisamos urgentemente refletir sobre como a espetacularização da vida – especialmente das tragédias – afeta nossa capacidade de ação. Somente superando essa lógica de mercantilização da dor e da experiência humana, poderemos começar a enfrentar os desafios climáticos de forma mais equitativa e eficaz, focando na realidade por trás das imagens. 

Ah, e sabe Lieutenant Dan, de que falei no começo do texto? Acabou preso, porque com toda a mídia em volta dele, descobriu-se que era um foragido da justiça.  

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