Julho das pretas: como me descobri uma mulher negra

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Opinião

Julho das pretas: como me descobri uma mulher negra

Antes, reconhecia minha ancestralidade nos traços, no cabelo, no físico, mas me via reproduzindo o vocabulário popular de morena, mestiça, ou qualquer termo do tipo


25 de julho de 2024 - 0h56

Nem sempre fui negra. Pelo menos eu não tinha me conscientizado sobre a minha etnicidade negra. No meu caso, o processo de entendimento e descobrimento da minha identidade só foi acontecer já na vida adulta, quando morei nos Estados Unidos. Antes, reconhecia minha ancestralidade nos traços, no cabelo, no físico, mas me via reproduzindo o vocabulário popular de morena, mestiça, ou qualquer outro termo desse tipo.

Até que precisei preencher formulários de autoidentificação racial para serviços diversos, o que me fez refletir profundamente sobre minha identidade. Nos Estados Unidos, eu precisava dizer se me considerava branca, negra ou afro-americana, nativa americana, asiática, nativa do Havaí e outras Ilhas do Pacífico, ou de origem hispânica/latina. E eu confesso que ficava reflexiva e um pouco confusa, pois eu não me identificava com nenhuma das opções.

De volta ao Brasil, tive a oportunidade de resgatar a minha história familiar e entender minhas origens. Descobri que meus antepassados eram do Vale do Paraíba, no interior do Rio de Janeiro, uma região de tradicionais fazendas de café. Sou bisneta de escravizados. Tanto a minha avó paterna quanto a materna tinham sido registradas apenas com o primeiro nome de suas mães e sem constar a paternidade. Este resgate histórico me encheu de orgulho e fez eu me engajar mais nas lutas raciais para além das de gênero. A questão não é uma pessoa negra de pele clara se descobrir negra, mas, sim, o que ela faz a partir daí, especialmente em prol das outras pessoas negras. Esse é um ponto importante de reflexão.

A experiência nos Estados Unidos me revelou uma verdade muitas vezes velada: a questão do colorismo. Como mulher negra de pele clara, demorei a me identificar. Uma amiga me disse recentemente: “me vi muitas vezes nesse não-lugar, e se autoafirmar negra é libertador”.

Desde nova, por exemplo, tive que lutar pela naturalidade dos meus cachos. Ainda me lembro, aos 6 anos, do meu cabelo sendo alisado. Chorei. Depois, tive cabelo curtinho até os 12 anos. Só então, me rebelei e passei a ser feliz com os meus cachos. Sabemos que o discurso da beleza produziu estereótipos sobre o cabelo. E o cabelo foi, junto com a cor da pele, um dos principais sinais diacríticos da negritude e também da nossa luta, com o movimento black power.

Essa jornada é comum para muitas mulheres, e para homens também. Como bem definiu Preto Zezé (presidente global da Cufa – Central Única de Favelas) em uma entrevista, no Brasil, “o negro não nasce negro, descobre que é negro”.

Todo 25 de Julho, celebramos o dia da mulher negra, latino-americana e caribenha. Desde 1992, este se tornou o mês de conscientização e reconhecimento das dificuldades enfrentadas por esse grupo. Para se ter uma ideia, nossa região faz parte dos 15 países com maior número de feminicídios no mundo, segundo a ONU.

No universo do trabalho, no Brasil, as mulheres negras ganham cerca de 70% menos que as mulheres brancas, conforme pesquisa do Ipea de 2016. Quando olhamos os cargos de liderança, apenas 3% dessas posições são ocupadas por nós, segundo o estudo “Representatividade, Diversidade e Percepção – Censo Multissetorial” da Gestão Kairós, de 2022. Tenho orgulho de liderar em uma companhia que vai na contramão desses números. Hoje, mais da metade dos cargos de liderança do Grupo L’Oréal no Brasil são ocupados por mulheres (58%) e cerca de 22% se autodeclaram negras.

A construção de um futuro mais igualitário para as mulheres é um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. E as empresas têm um papel crucial nesse processo. Devem trabalhar internamente para promover inclusão e diversidade, rever processos, estabelecer programas robustos de ações afirmativas e trabalhar em rede.

No Brasil, temos exemplos inspiradores desse trabalho de união de grandes companhias, como o Movimento Pela Equidade Racial (Mover) e o Movimento Raça é Prioridade, uma iniciativa do Pacto Global da ONU – Rede Brasil em parceria com o CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades). O Movimento tem como ambição alcançar 1.500 empresas comprometidas para promover mais de 15 mil pessoas negras em cargos de liderança e capacitar mais de 20 mil pessoas negras até 2030.

Já o Mover reúne atualmente mais de 50 empresas e tem como objetivo alcançar 10 mil posições de lideranças negras e 3 milhões em impacto até 2030. Recentemente, o Mover lançou a série documental “Pequena África” no Rio de Janeiro, com apoio do Grupo L’Oréal no Brasil e do grupo Allos, destacando a história e o legado da população negra na Zona Portuária da cidade. Um filme incrível, que busca educar e sensibilizar sobre a importância histórica da região, e também promover a reflexão crítica sobre as dinâmicas sociais que afetam a vida dos jovens negros.

Vale conferir também a exposição no Instituto Pretos Novos, promovida pelo Grupo L’Oréal no Brasil, para retratar a beleza negra e a história afro-brasileira. “Impressões” será lançada neste dia 25 e é assinada pela artista periférica Isabelle Mesquita, apresentando pinturas, ilustrações, desenhos e instalações inspiradas na ancestralidade feminina negra e nas mulheres negras contemporâneas.

Há uma história do Brasil que não aprendemos nas escolas e que é fundamental ser difundida para que não haja um apagamento histórico e para que nossas vivências não se resumam a dor. Assim, acredito que, finalmente, teremos um processo mais legítimo de construção da nossa identidade. Dessa forma, enfim, não negaremos mais a nossa cor e, consequentemente, não naturalizaremos mais o racismo.

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