O elástico da violência e o perigo do discurso de “mimimi”
Até quando vamos relativizar agressões diárias contra mulheres e meninas e nos isentar da responsabilidade?
O elástico da violência e o perigo do discurso de “mimimi”
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4 de outubro de 2024 - 15h15
Minha filha de 4 anos está com o braço engessado. Mais uma aventura da infância, se não fosse por um detalhe: o modo como ela o quebrou. Como aconteceu? Um amigo muito próximo dela a empurrou de um escorregador alto na escola. O episódio não é comum, afinal, o objetivo de projetar e construir parquinhos não é que as crianças caiam e se machuquem feio. Mas, sim, pode acontecer, especialmente se há uma agressão envolvida.
Acontece que foi uma escalada de agressões. Primeiro, foram gestos sutis e falas violentas direcionadas a ela. Depois, simulação de sufocamento. Em seguida, chutes e socos. Enquanto isso, a intensidade da relação das duas crianças aumentava e os pais e professores relativizavam os acontecimentos porque a dinâmica era, em geral, “saudável”. Na frente dos pais, não era, mas a escola garantia que sim. A instituição, por sua vez, dizia que precisava respeitar a troca intensa entre aquelas duas crianças, que era de carinho e muito bonita, “escapava” a tudo e todos.
Por fim, o episódio chegou. Nós sabíamos que poderia acontecer. Foi doído, mas não nos surpreendeu. Isso é o pior de tudo: não surpreendeu. O mais curioso é que nenhum adulto responsável viu a queda. Depois, o amiguinho dela se responsabilizou, sentiu-se culpado, chorou, disse que era um monstro. As crianças da turma o defenderam, ficaram assustadas e levaram a história para suas casas. Enquanto isso, professoras e responsáveis da escola, adultos, acolhiam minha filha. Apenas.
Depois, consolaram o menino. Fomos buscá-la. Levamos ao pronto-socorro. Dois ossinhos quebrados. Colocaram tudo no lugar. Ela gritava de dor. Eu chorava, mas tentava disfarçar porque precisava dar força a ela e porque também estava aliviada, ao mesmo tempo, por ser apenas um braço.
Em seguida, na reunião de pais, houve uma completa relativização. Como se todos fossem vítimas e tivessem sido traumatizados. Depois, relatamos como nos sentíamos, com emoção, e a reação de alguns da turma era sobre como a dinâmica do grupo estava desequilibrada ao olhar apenas para a vítima. No final, falaram sobre a coragem do amigo dela de pedir desculpas.
Pode ser. Crianças estão aprendendo. Mas quando nós, adultos, deixamos de ser objetivos e passamos a relativizar a dor do outro assim? Quando deixamos de encarar a verdade que se impõe a nós? Quando as músicas mágicas das salas de educação infantil, a gestão de crise de escolas de adolescentes e os discursos treinados de empresas silenciaram a insalubridade dos espaços onde os diferentes convivem?
De acordo com estudo Women in the Workplace 2023, da McKinsey & Company, as mulheres sofrem mais microagressões no ambiente de trabalho do que homens, e o cenário fica mais grave quando são LGBTQIAP+, não brancas e com alguma deficiência física. Microagressões são comentários e atitudes sutis, intencionais ou não, como piadas depreciativas, apelidos e interrupções de fala, que representam preconceito, discriminação ou estereótipos em relação a características de uma pessoa, como gênero, raça, orientação sexual, idade ou deficiência.
Cerca de 78% das mulheres que passam por microagressões no trabalho escolhem se proteger e modificam sua aparência ou comportamento para evitar mais problemas. A pesquisa menciona ainda que muitas delas decidem não emitir opiniões ou expressar suas preocupações para evitar serem percebidas como difíceis ou agressivas pelas outras pessoas.
Além disso, mulheres que enfrentam esse comportamento têm três vezes mais chances de pensar em deixar seus empregos, e quatro vezes mais chances de se sentirem exaustas com frequência.
As microagressões, agressões e violência de gênero começam em casa e na escola. As meninas de até 9 anos são as maiores vítimas da violência doméstica, por exemplo, segundo levantamento do Atlas da Violência 2024, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Ainda há poucas pesquisas sobre violência de gênero escolar, mas basta conversar com mães, pais e as próprias crianças para saber que agressões contra meninas não são incomuns.
Encaro o gesso da minha filha 24 horas por dia, mas grupos minorizados lidam com suas feridas diariamente, há séculos. É preciso ser forte. Ninguém se importa de verdade. O coletivo está mais preocupado em sempre relativizar quem sofre microagressões e violências frequentes e, assim, não se responsabilizar. Quem vivencia os danos são as vítimas.
Até quando vamos relativizar e falsificar a verdade? Até quando vamos estender o elástico de agressões e nos isentar da responsabilidade? Até quando todos serão vítimas em medidas iguais? A cultura de achar que é tudo “mimimi” está adoecendo o mundo. E esse é apenas um discurso de uma mulher branca privilegiada.
A mudança começa na educação, na escola e em casa. Sim, quando ainda somos crianças. E não me venha falar que educação de gênero não tem início na barriga. Como dizia minha mãe, “o buraco é muito mais embaixo”.
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