Burnout e prevenção: o papel das empresas e lideranças
Especialistas em estresse e segurança psicológica falam sobre a função das companhias e dos líderes na prevenção do burnout
Burnout e prevenção: o papel das empresas e lideranças
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Lidia Capitani
10 de outubro de 2022 - 16h13
Esta matéria faz parte do “Especial Burnout”: uma série de reportagens que traz histórias, contexto e soluções para a crescente onda de esgotamento entre as profissional mulheres.
Desde janeiro de 2022, a síndrome de burnout foi reconhecida como fenômeno ocupacional na 11ª revisão da Classificação Internacional de Doenças, ou CID-11. Trata-se de uma base estatística para relatar doenças e condições de saúde usada no mundo inteiro. No texto, consta a definição: “Burnout é uma síndrome conceituada como resultante do estresse crônico no local de trabalho que não foi gerenciado com sucesso. É caracterizada por três dimensões: sentimentos de exaustão ou esgotamento de energia; aumento do distanciamento mental do próprio trabalho, ou sentimentos de negativismo ou cinismo; e redução da eficácia profissional”, de acordo com a OMS.
A incorporação do burnout no CID modifica muitas coisas tanto para o empregador quanto para o trabalhador. Ela qualifica o diagnóstico com maior clareza, e determina que o profissional com a síndrome possa pedir afastamento e que não ocorra a sua demissão quando ele retornar. A resolução ainda é nova, mas ajuda a enfrentar um problema que muitas vezes é silenciado.
Segundo dados do INSS, foram mais de 195 mil afastamentos por doenças mentais e comportamentais em 2021. Entre as doenças mais citadas como motivo estão os transtornos ansiosos (mais de 48,8 mil) e o episódio depressivo (48,7 mil).
Em relação ao burnout, uma pesquisa realizada pelo International Stress Management Association (ISMA-BR) constatou que 32% dos profissionais brasileiros sofriam da síndrome em 2019, segundo a Presidente da associação, Ana Maria Rossi. Entretanto, 92% desses trabalhadores com burnout se sentiam incapazes de exercer suas funções, porém seguiam trabalhando.
“Quando uma pessoa sofre de burnout, ela fica incapacitada. Ela comete erros, a concentração é quase nula, ela se torna extremamente agressiva e hostil, ou extremamente passiva. Infelizmente, essas pessoas continuam no seu trabalho por receio de serem demitidas”, explica a presidente. Ana Maria Rossi é Doutora em Psicologia Clínica e Comunicação Verbal e também dirige a Clínica de Stress e Biofeedback, em Porto Alegre.
O AMBIENTE QUE ADOECE
Patricia Ansarah é fundadora do Instituto Internacional em Segurança Psicológica (IISP), facilitadora de aprendizagem de grupos e desenvolvimento de liderança e tem mais de 20 anos de experiência como RH. De acordo com a especialista, vivemos um contexto de “altos índices de absenteísmo, altos índices de custo das organizações com auxílio médico, com benefícios relacionados à saúde mental, com afastamento, índices de turnover, e pessoas absolutamente esgotadas e não performando como elas deveriam”, afirma.
“Aprendemos a falar sobre resultados e performance, o que associamos ao sucesso. Uma alta performance que significa resultados a qualquer custo. Fomos aprendendo a passar por cima das nossas questões emocionais, das nossas inseguranças, e aprendendo que o trabalho não era lugar de se conversar sobre isso, que não tinha espaço na agenda” reflete a especialista em segurança psicológica.
Como consta na descrição do CID, o burnout é um fenômeno que decorre do estresse crônico e mal gerenciado no ambiente de trabalho. Tatiana Pimenta, fundadora do Vittude, explica o que pode provocar a síndrome: “a condição pode acontecer por várias razões, como um desequilíbrio entre vida profissional e pessoal, expectativas de trabalho irreais, dinâmicas disfuncionais no local de trabalho e até mesmo o fato de estar em uma profissão emocionalmente desgastante (caso de profissionais de saúde ou educadores, por exemplo)”.
Já a Presidente da ISMA-BR elenca alguns dos fatores do ambiente profissional que potencializam o adoecimento:
Desequilíbrio entre esforço e recompensa
Não necessariamente se trata de recompensas financeiras. “Muitas vezes, os trabalhadores preferem ter mais gratificação e reconhecimento da empresa, de que eles não são meros números, do que ter alguns trocados a mais no final do mês”, afirma.
Sobrecarga de trabalho
Outro grande fator de desgaste do profissional é a sobrecarga de trabalho e a falta de recursos. Inclusive, este foi um dos gatilhos para que Izabella Camargo adoecesse, conforme ela relata nesta entrevista para o Women To Watch. Naquela época, a jornalista acumulou a preparação e a apresentação de três jornais.
Ruptura na comunidade
Conflitos interpessoais nas equipes também é um ponto de atenção, e isso inclui a falta de apoio, falta de confiança, ou quando um profissional percebe que é preterido para promoções ou oportunidades em relação a um colega que está mais próximo do gestor.
Rompimento de valores
O desalinhamento entre os valores pessoais e da empresa também pode ser um fator estressante, principalmente em relação a valores éticos. “Eu tive uma paciente que sofria de burnout e ela dizia que quando chegava no banco, ela pegava o coração e colocava na gaveta. Porque se ela pensasse no que estava fazendo com os clientes, ela não conseguiria trabalhar”, relata a especialista em estresse.
PREVENINDO BURNOUT
“O esgotamento dos funcionários não se desenvolve da noite para o dia. Ele se arrasta lentamente, o que dá a eles e aos empregadores tempo para observar e intervir precocemente diante dos sinais de alerta”, explica Tatiana Pimenta. Dessa forma, ao prestar atenção nessas manifestações, os líderes podem estruturar programas ou ações para interferir no processo.
Os sintomas mais comuns que podem identificar um profissional em risco de burnout são: aumento da exaustão emocional, mental e física, a falta de envolvimento em atividades que antes geravam satisfação, aumento do absenteísmo, isolamento, maior sensibilidade ao feedback e irritabilidade, produtividade reduzida e o surgimento de sintomas físicos como queda da imunidade, tensão muscular, problemas gástricos e falhas de memória.
Segundo a pesquisa da ISMA-BR, 49% dos profissionais com burnout desenvolvem depressão. Por isso, a melhor solução para este contexto é a prevenção. As principais medidas que as empresas podem aplicar para prevenir o burnout perpassam pela redução dos fatores estressores. “A prevenção primária objetiva reduzir ou eliminar os estressores ocupacionais que são a sobrecarga de trabalho, a falta de controle, a recompensa, etc”, explica Ana Maria Rossi.
Prevenção primária: diminuir fatores estressantes
Neste ponto, os gestores precisam analisar se a carga de trabalho está além dos limites daquele profissional. Isso envolve avaliar se ele tem os recursos necessários para fazer seu trabalho, se entende que é gratificado pelo esforço que exerce, se há uma pressão exacerbada para ele demonstrar resultados e também diminuir as incertezas ou dúvidas que existem, principalmente em relação ao novo contexto que vivemos pós-covid em relação a demissões, enxugamentos, modificações internas, entre outras inseguranças. A comunicação clara e transparente também entra neste quesito, assim como a flexibilização dos modelos de trabalho.
Prevenção secundária: soluções paliativas
A segunda fase, ou prevenção secundária, de acordo com a especialista em estresse, acontece quando a empresa não conseguiu limitar os gatilhos. Neste ponto é que as companhias podem adotar iniciativas como ginástica laboral, massagem, parcerias com academias, troca do café pelo chá, refeições saudáveis, entre outros. Apesar de ajudarem, elas não previnem, são soluções paliativas.
Prevenção terciária: tratamento
Já a prevenção terciária, na verdade, entra como tratamento. Nestes casos, a empresa disponibiliza psicólogos, psiquiatras ou um departamento médico justamente para fornecer tratamentos.
SEGURANÇA PSICOLÓGICA
Patricia Ansarah explica que a segurança psicológica se trata de “um ambiente onde os membros do time compartilham da crença de que quando estão juntos podem fazer perguntas, trazer inquietações, inseguranças, ser vulneráveis e se arriscar, porque sabem que não serão humilhados, julgados, e fazem isso sem medo”. O conceito se relaciona diretamente ao falarmos de prevenção do burnout, uma vez que a segurança psicológica propicia a construção de ambientes mais acolhedores, em que o capital emocional faz parte da estratégia de negócio.
“Segurança psicológica, no final das contas, impacta nos resultados por meio do cuidado do tecido social da organização e da qualidade das relações”, afirma a especialista. Ou seja, ambientes psicologicamente seguros fortalecem a saúde mental dos membros do time, uma vez que eles podem se expressar para dizer quando têm dificuldades, inquietações ou problemas.
“Não é sobre criar espaços coloridos, fazer sala de descompressão, ping pong. Segurança psicológica é sobre criar rituais e uma dinâmica de funcionamento de times onde eu falo que estou exausta, que não vou conseguir cumprir o prazo, que preciso de ajuda, que não vou dar conta de fazer. Porque não adianta ter tudo isso se no dia a dia ainda existem julgamentos, micro violências e intolerância a erros. Não há espaço para perguntas ou para discordâncias”.
O PAPEL DA LIDERANÇA
“Um dos papéis importantes do líder é que ele esteja pronto para acolher, mas, principalmente, que seja um modelo para seus liderados e a organização”, afirma Tatiana Pimenta. E o modelo a ser exercido, neste caso, é da pessoa que expõe as suas vulnerabilidades e inseguranças. Este é um grande desafio, uma vez que muitas lideranças não têm esse repertório ou segurança para se expor.
Nestas situações, Patrícia Ansarah recomenda dois comportamentos-chave que ajudam a promover segurança psicológica e que precisam partir dos líderes. “O primeiro comportamento é garantir a distribuição de fala igualitária. Antes de terminar uma reunião ou tomar uma decisão, por exemplo, o líder tem a certeza de que escutou todo mundo do time, que ele não chegou a essa conclusão sozinho, porque não há mais espaço para lideranças apaixonadas pela própria voz.”
“O segundo comportamento chamamos de prática da sensibilidade social”, explica Patrícia. Segundo ela, não precisamos que as pessoas nos digam que estão desconfortáveis, porque é possível perceber por pequenos comportamentos: “quando tem alguém revirando os olhos, de cara fechada, pegando o celular, fechando a câmera, fazendo fofoca, não entrando na reunião, cruzando os braços, sentando na cadeira como quem diz ‘isso não é comigo’”. A recomendação da especialista é “falar sobre o elefante na sala”, ou seja, trazer para a discussão o desconforto que o líder percebeu.
“Quando falamos de segurança psicológica, não se trata de construir um ‘lugar quentinho’. Falamos de lugar de conversas de adultos bastante desconfortáveis, porque é onde as perguntas são feitas, onde os confrontos são feitos, onde há espaço para as dúvidas entrarem e para os confrontos produtivos serem feitos”, explica.
SOLUÇÕES: AVALIAÇÕES DE RISCO
Atentos a essa questão, o Vittude desenvolveu uma ferramenta de análise do nível de estresse e risco de burnout para o meio corporativo, a partir de características culturais brasileiras. “A Escala Vittude de Estresse e Propensão à Síndrome de Burnout considera os três principais aspectos que sinalizam a doença: esgotamento, baixa realização profissional e despersonalização”, descreve a CEO, Tatiana Pimenta.
Mesmo que não seja detectado o risco de burnout, os resultados entregam uma análise do nível de estresse e uma sugestão de plano de ação preventivo. “Ao prestar atenção e procurar os indicadores mais comuns, os líderes podem estruturar programas de saúde mental efetivos, de modo a evitar que a condição aumente ou se desenvolva”, informa a CEO.
Existem diferentes avaliações de risco de saúde mental disponíveis no mercado. Assim como o Vittude, o Instituto Internacional de Segurança Psicológica tem uma ferramenta que analisa o nível de segurança psicológica entre times. “Conseguimos fazer um programa customizado a partir da nossa avaliação. Analisamos aquele comportamento que entendemos como limitador da evolução da equipe. No final do programa, medimos de novo e comparamos com o nível de engajamento, clima e performance”, explica Patrícia.
O RETORNO PÓS-BURNOUT
Um ponto muito importante para as empresas prestarem atenção é quanto à readaptação do profissional quando ele retorna ao trabalho após o diagnóstico e tratamento do burnout. “O acolhimento desse funcionário por parte da empresa e da equipe será extremamente importante para que ele não tenha uma reincidência”, reforça Ana Maria Rossi.
Com a incorporação da síndrome no CID, o profissional não pode ser demitido após o diagnóstico, com risco da empresa sofrer processos judiciais. Portanto, é preciso criar um ambiente propício para o seu retorno, garantindo que não haja retaliações tanto por parte da gestão quanto por parte da equipe.
Ainda de acordo com a Presidente do ISMA-BR, Ana Maria Rossi, o próprio indivíduo precisa se cuidar para respeitar os seus limites e não reincidir. Se a empresa não o respeita ou se ele sentir que não haverá mudanças, ele precisa tomar as rédeas da sua própria saúde, impondo limites, criando resiliência ou buscando satisfação em outras áreas da vida. Por vezes, alguns optam pela demissão. Uma decisão difícil, mas é importante que ele tenha claro quais os seus objetivos de vida e que a sua saúde vem em primeiro lugar.
O burnout e estresse causam diversas consequências negativas para as organizações: demissões voluntárias, diminuição da produtividade e resultados, aumento da hostilidade, aumento dos gastos com afastamentos, tratamentos e benefícios. Já a prevenção ou a tomada de medidas para garantir a segurança psicológica traz muitos benefícios, inclusive com crescimentos dos indicadores de engajamento, performance e até de inovação, além de aumentar a confiança, satisfação e motivação dos colaboradores.
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