O que significa ser uma empresa promotora de saúde mental?
Nova lei nacional atestará programas corporativos de saúde mental, com olhar especial sobre as mulheres. Entenda
O que significa ser uma empresa promotora de saúde mental?
BuscarNova lei nacional atestará programas corporativos de saúde mental, com olhar especial sobre as mulheres. Entenda
Lidia Capitani
5 de agosto de 2024 - 16h04
Neste ano, o governo brasileiro criou a lei que instaura o Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental, em que estabelece os requisitos para a concessão da certificação. A lei surge num momento importante: o Brasil encontra-se numa epidemia de saúde mental, sendo o país com maior prevalência de ansiedade do mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).
De acordo com uma pesquisa conduzida pela Vittude, empresa especializada em programas de saúde mental para companhias, 33% dos colaboradores avaliados apresentam algum tipo de transtorno mental em níveis severos ou extremamente severos, como ansiedade, depressão e estresse. Já segundo os dados do Ministério da Previdência Social, houve um aumento de 38% nos afastamentos por transtornos mentais em 2023.
Quando colocamos uma lupa sobre as mulheres, as pesquisas demonstram uma situação ainda mais grave. Outro estudo da Vittude revela que elas são mais afetadas: 10,4% enfrentam níveis graves ou extremamente graves de estresse, ultrapassando os índices observados nos homens, onde esse sintoma ocorre em 6,6% dos casos.
“É importante destacar que as mulheres têm um risco maior de adoecimento mental em comparação com os homens. As doenças psíquicas são multifatoriais, envolvendo fatores biológicos, genéticos, ambientais e hormonais. Comparando os gêneros, vemos que as experiências, vivências e biologia são diferentes”, destaca Simone Nascimento, palestrante e consultora de saúde mental nas organizações.
Um segundo ponto que contribui para o adoecimento das mulheres é a dupla ou tripla jornada que as mães e cuidadoras executam. Elas precisam conciliar os trabalhos de cuidado e da casa com a jornada profissional e, frequentemente, sem o apoio necessário de pares ou da própria empresa.
A falta de reconhecimento e de oportunidades (o famoso teto de vidro) é também um fator que afeta a saúde e autoestima dessas profissionais. “Muitas vezes, elas precisam se esforçar mais do que os homens para ter seu trabalho reconhecido, especialmente em áreas predominantemente masculinas”, avalia Tatiana Pimenta, CEO da Vittude.
O assédio e a violência contra as mulheres ainda são perpetuadas no ambiente corporativo. Mesmo microagressões e silenciamentos não devem ser minimizados. “Muitas vezes, os homens falam entre si e, quando a mulher dá sua opinião, é ignorada ou sua ideia é apropriada por um homem que recebe o crédito”, complementa Fatima Macedo, CEO da Mental Clean.
A lei surge exatamente para promover um ambiente de segurança psicológica, saúde mental e bem-estar para todos, mas ela também pontua o cuidado especial com as mulheres em um de seus parágrafos. O texto é dividido em três blocos principais: promoção da saúde mental, bem-estar dos trabalhadores e transparência e prestação de contas.
Por ora, nenhuma empresa conseguiu o certificado, pois ainda estão debatendo sobre os critérios para avaliação dos programas e quem fará parte da comissão avaliadora. “Espera-se que até o final deste ano essa metodologia esteja definida, permitindo que, a partir de 2025, as companhias recebam todas as informações necessárias para se adequar e buscar a certificação”, esclarece Fatima.
Aplicar ações esporádicas é diferente de propor um programa de promoção de saúde mental estruturado. “Para que um programa de saúde mental seja eficaz, ele deve incluir três etapas: promoção de saúde, prevenção e intervenção”, explica Tatiana Pimenta. Segundo a CEO, a promoção começa pela conscientização sobre a importância da saúde mental. A prevenção consiste em realizar diagnósticos e triagens, e a intervenção parte para a fase do tratamento, quando necessário.
A começar pela promoção, as campanhas de educação podem ocorrer durante os meses coloridos, como janeiro branco e setembro amarelo, mas não se limitam aí. Uma campanha de conscientização também trabalha a comunicação do que a empresa disponibiliza em termos de programas e benefícios. “As pessoas precisam saber o que a organização oferece e entender a importância da adesão a esses benefícios”, afirma Simone.
O diagnóstico, por sua vez, não significa apenas identificar casos isolados, mas também avaliar a saúde mental e bem-estar do coletivo. “Na Vittude, nossos programas de saúde mental são baseados em quatro pilares: diagnóstico, educação, tratamento subsidiado e intervenção. Uma das nossas propostas é que as empresas façam um diagnóstico anual da saúde mental da sua população”, diz a CEO.
Já na parte de intervenção, Fatima Macedo destaca três níveis diferentes: primário, secundário e terciário. “Na intervenção primária, focamos nos estressores do ambiente de trabalho, como carga de trabalho, relacionamentos, comunicação, valorização e reconhecimento. Já no nível secundário, realizamos um mapeamento dos grupos de risco e monitoramos a saúde mental dessas pessoas. A intervenção terciária envolve a oferta de recursos de apoio psicológico, como psicoterapia, avaliação e atendimento psiquiátrico”, afirma.
As entrevistadas ressaltam a importância de pensar cuidadosamente sobre a intervenção terciária, defendendo que oferecer acesso a plataformas de psicoterapia pode não ser suficiente. “No Brasil, onde milhões de pessoas ganham até um salário mínimo, muitos não têm condições de pagar nem mesmo consultas acessíveis. Infelizmente, algumas empresas afirmam oferecer programas de saúde mental, mas, na prática, os colaboradores arcariam com os custos das consultas”, reforça Tatiana.
A proposta da CEO da Vittude é que as empresas ofereçam subsídio integral para sessões de terapia e psiquiatria. “Temos casos de sucesso na Vitude em que empresas subsidiam terapia, psiquiatria e medicação, resultando em colaboradores que se recuperam mais rápido e permanecem engajados”, destaca.
Para garantir um ambiente de segurança psicológica, que promova o equilíbrio e onde os colaboradores se sintam seguros para expressar suas dificuldades, a liderança precisa estar engajada e letrada sobre questões da saúde mental. Por isso, a lei também inclui a necessidade de programas de capacitação para líderes. “A transformação precisa começar de cima para baixo. Líderes comprometidos e conscientes são necessários para implementar mudanças eficazes”, defende Simone.
Outro ponto destacado pela lei é a criação de canais para recebimento de sugestões e de avaliações, o que inclui centros de denúncia. “É preciso ter canais anônimos para avaliações e denúncias, especialmente em ações anti-estigma e anti-assédio. Esses canais devem oferecer segurança para que as pessoas possam fazer avaliações e queixas sem medo de retaliação”, diz Simone.
A promoção da saúde mental das mulheres é um dos requisitos para a certificação. Por isso, é essencial criar soluções específicas para elas. “Se as mulheres não são bem cuidadas, isso se reflete em quem contribui para a produção e previdência social”, avalia Simone. Algumas ações incluem políticas afirmativas para seleção e promoção de talentos, principalmente para cargos de liderança, mentorias, flexibilidade de jornadas de trabalho e grupos de apoio para mulheres e mães.
“Faço parte de alguns grupos de mentoria para lideranças femininas, como o programa da Fiesp, Elas na Indústria, onde sou mentora. Esses programas são maravilhosos para as mulheres participarem, pois oferecem autoconhecimento, apoio e desenvolvimento”, diz Fatima.
Além disso, já existem empresas que criaram programas específicos para questões femininas, como depressão pós-parto e até mesmo luto materno. “Sabemos que 60% das mulheres enfrentam baby blues e cerca de 25% têm depressão pós-parto. A Sky, por exemplo, tem um programa chamado ‘Alô Bebê’ que incentiva colaboradoras grávidas a fazer terapia desde o início da gravidez e continuar após o parto”, destaca Tatiana.
A questão do canal de denúncias já entra na parte de transparência e prestação de contas do texto, principalmente no que tange a proteção dos dados. “As pessoas precisam sentir que podem acessar a terapia e outras soluções sem medo de serem identificadas. A proteção dos dados deve garantir que, embora saibamos, por exemplo, que há cinco pessoas com depressão, não saibamos quem são”, destaca Simone.
Por fim, o texto também pontua a necessidade de estabelecer metas e análises de resultados periódicos. Existem uma série de indicadores que podem ser acompanhados e que foram pontuados pelas entrevistas, como número de afastamentos, turnover, absenteísmo, contribuição previdenciária, quantidade de entradas e altas no programa, ações realizadas, participações, número de líderes capacitados e dados específicos como CID de adoecimento mental.
A Vittude, por exemplo, usa o afastamento como uma das métricas para avaliar a efetividade dos programas. “No Vittude Summit, vimos um caso da Thomson Reuters que, após um ano com o programa, reduziu em 60% os custos com afastamentos. Isso demonstra que o investimento em saúde mental pode melhorar a saúde dos colaboradores e reduzir o absenteísmo”, destaca a CEO.
Entretanto, Fatima Macedo recomenda cautela ao adotar o absenteísmo como métrica. “Muitas vezes, ao implementar um programa, inicialmente pode haver um aumento nos atestados e afastamentos porque as pessoas começam a reconhecer seus problemas e buscar ajuda. Isso é positivo, pois indica que o programa está funcionando”, acrescenta.
Por isso, pesquisas de clima são uma ferramenta complementar que podem contribuir para essa avaliação. A análise pode ser feita antes, durante e depois de certas intervenções. Além de avaliar o clima geral, essas ferramentas podem identificar problemas de estresse, pressão e lideranças despreparadas.
Apresentar estes dados é uma questão de governança e compliance, afirma Simone. “Mesmo que os resultados não sejam bons, é essencial apresentá-los com transparência, tanto para o público externo quanto para os colaboradores”, continua.
Os critérios e especificidades da lei ainda estão em debates, e ainda há questões importantes a serem debatidas. Tatiana Pimenta, por exemplo, defende a criação de categorias para diferenciar o nível de maturidade das empresas em seus programas de saúde mental. A CEO também defende a determinação de um investimento financeiro mínimo por colaborador. “Não adianta dizer que há um programa se não há investimento real. Algumas empresas limitam-se a ações superficiais, como palestras em setembro, e ainda pedem psicólogos para trabalhar de graça”, provoca.
Já Fatima Macedo pontua a questão da diversidade de tamanhos e tipos de empresas que existem no Brasil. “Imagine a realidade de uma empreendedora querendo levar saúde mental para suas pessoas, comparada a uma grande empresa”, diz. Sua preocupação é que o certificado também possibilite que pequenos e médios empreendedores possam obtê-lo.
Com a obtenção do certificado, as empresas avançam em pautas da agenda ESG, principalmente referente à governança, mas os benefícios vão além. As companhias podem enxergar o certificado como uma maneira de fortalecer sua marca.
“Empresas que investem na saúde mental se tornam mais competitivas por dois motivos: primeiro, têm trabalhadores mais engajados e criativos, que trazem soluções melhores. Segundo, elas se tornam atrativas para talentos, com altos volumes de candidaturas para vagas, porque têm uma reputação de cuidar bem dos seus funcionários”, avalia Nascimento.
Além disso, existe retorno financeiro positivo para quem investe em saúde mental. “Na Vittude, vemos empresas alcançando um ROI de 6 a 7 vezes. Ou seja, para cada R$1 investido, há um retorno de R$6 em savings para a organização. Isso demonstra claramente que investir em saúde mental resulta em benefícios financeiros substanciais para o negócio”, defende Tatiana.
No final, é uma relação na qual tanto empresas quanto funcionários saem ganhando. “A empresa ganha em produtividade e engajamento, e os funcionários ganham um ambiente de trabalho que promove seu bem-estar”, afirma Simone.
“Minha preocupação é que o certificado não se torne um ‘mental health washing’”, avalia Tatiana. Por isso, a criação desses critérios é essencial. “Acredito que, no futuro, essa certificação pode contribuir significativamente para que as empresas se destaquem e se tornem referências. Ao promover a saúde mental, estamos preparando líderes para serem mais eficazes na comunicação, no feedback assertivo e no desenvolvimento de suas equipes. Isso ajuda a promover um ambiente mais saudável”, conclui a CEO.
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